12 de set. de 2011

CAPÍTULO VIII OS TRAÇOS CONSERVADORES DO LÍDER JUVENIL

A REBELIÃO ROMÂNTICA DA JOVEM GUARDA
Escrito por Rui Martins
Publicado pela Editora Fulgor em 1966

CAPÍTULO VIII 
OS TRAÇOS CONSERVADORES DO LÍDER JUVENIL 

a) A suposta liberalidade 
Roberto Carlos, o líder da juventude «ié-ié-ié» nacional, embora tenha um modo próprio de se vestir e deixe crescer seus cabelos, agindo numa e noutra forma em desacordo com as convenções sociais, é, no fundo, um jovem conservador. O conhecimento de suas impressões sobre diversos assuntos e de seu comportamento em determinadas circunstâncias especiais não revelam nenhum inconformismo e nenhuma interpretação mais arrojada para os problemas que a sociedade julga já ter dado a última palavra. 
A suposta liberalidade diante dos tabus mantidos pelas gerações passadas não existe. Ele guarda os mesmos preconceitos preservados pelos adultos e, nas entrevistas que concedeu aos mais diversos órgãos de difusão, jamais revelou possuir um espírito renovador ou reformador. Há nele concordância com o pensamento dos mais velhos em todos os assuntos importantes. 
Talvez alguém argumente que essa posição favorável ao pensamento da sociedade constituída seja uma autodefesa. Isto é, para não provocar uma reação que poderia frustrar-lhe o sucesso. Entretanto, essa atitude de autodefesa - se houvesse - confirmaria seu caráter conservador. Nenhum jovem possuidor de interpretações novas, colocado em situação de liderança e crendo em suas idéias, iria preocupar-se em mascarar seu pensamento. Pelo contrário, o desafio e o quixotismo são a característica marcante da mocidade. Há um certo prazer para o jovem rebelde em violentar os esquemas que considera superados. 
Isso não significa que o jovem, pelo simples fato de ser contrário ao convencional, tenha razão. Mas o fato de ele ser contra e de não fazer segredos disso revela a sua juventude. Todos os grandes movimentos de jovens quer na literatura, pintura ou política sempre significaram o rompimento com o que era aceito, dogmàticamente, como verdadeiro. O posterior amadurecimento permitia uma reavaliação da decisão inicial. Entretanto, foi sempre o impulso rebelde da juventude o revitalizador da sociedade que, de tempos em tempos, é assim submetida a um reexame geral. 
A aquiescência aos padrões do mundo em que vive não é,porém, o traço marcante da juventude sadia. Não há dúvida de que essa aceitação satisfaz aos responsáveis pelos destinos da sociedade. Os adultos julgam já ter encontrado a explicação definitiva para as questões da existência e para o comportamento social do homem. Sentem-se seguros quando a geração moça os entende, pois a apresentação de outras explicações sempre lhes é dolorosa. 
Entretanto, o mundo encontra-se em fase de constante transformação pelo que é impossível a manutenção de fórmulas rígidas de comportamento. Dia a dia, novos conhecimentos obrigam a revisão de fatos anteriores, quer no campo da ciência, da técnica ou da própria moral. Verdadeiros tabus das gerações passadas são discutidos abertamente em nosso tempo. Até mesmo a religião reformula suas crenças e <;e readapta para não envelhecer nesse mundo dinâmico. 
Roberto Carlos, porém, não traz nada de novo para a juventude brasileira. Nenhum protesto e nenhuma nova posição, aceitando e enquadrando-se docilmente na estrutura social em funcionamento. Não faz uma crítica, foge delas. E para a juventude desorientada das grandes cidades oferece apenas uma alternativa: cantar e dançar o «ié-ié-ié». 

b) A manutenção dos tabus 
Suas preocupações são todas de ordem externa. Para deixar-se fotografar, demora bem uns dez minutos ajeitando os cabelos, enquanto revela um desusado requinte no trajar. Nas questões de ordem interna suas posições são retrógradas, refletindo, exatamente o pensamento da geração passada. 
Suas expectativas diante da mulher não têm nada em comum com o pensamento moderno. Para ele, a mulher deve ser feminina e simples, não sendo essencial a. inteligência. Ora, por ser feminina se entende fragilidade, fraqueza e capacidade de sujeição; ser simples, significa ser de manejo fácil, com muita docilidade e por achar que a mulher deve ter pouca inteligência entende-se ser ele partidário da velha escola que não exigia da mulher grandes dotes intelectuais, pois o homem é quem deveria resolver sempre pelos dois. 
Sobre a igualdade dos direitos da mulher, Roberto Carlos tem duas atitudes. Pela teórica, não ergue qualquer obstáculo a essa conquista. Mas na prática, é bem diferente. Respondendo a uma jornalista sobre a questão, o jovem rebelde demonstrou estar comprometido com todos os preconceitos que tolhem e marginalizam a mulher. Sua posição sobre a virgindade feminina é tão conservadora e convencional como a de qualquer respeitável senhor. 
Não enfrenta o problema, e embora afirme que, na nossa época, virgindade não é mais importante, continua achando que as moças bem educadas casam virgens. Entretanto, não mais existindo a virgindade (no sentido físico), não há mais necessidade de preocupar-se com ela (no sentido moral). Ele é, portanto, um defensor das teorias de nossos avós, embora pareça liderar posições mais evoluídas. Por último, parece achar que o homem é polígamo por natureza, pelo que as mulheres devem se conformar com essa realidade. 
Quanto aos problemas gerais da humanidade, o líder juvenil não demonstra maior interesse. Está feliz no seu universo familiar e mais ainda com o sucesso que lhe tem proporcionado uma sensação de realização pessoal. Pobreza, miséria, injustiça, insegurança, ameaça de guerra são preocupações que, às vezes, lhe vêm à cabeça quando lê jornais. Não é, porém, seu costume ler muitos jornais. E como não se demora na análise desses temas não tem qualquer opinião formada sobre eles. 
Sobre os nossos próprios problemas tem reação idêntica. Em síntese, não tem qualquer interesse pelas questões que chama, para se justificar, de problemas de adultos. Não sabe direito quem é o seu homônimo Roberto Campos, nem quem é governador em Minas ou o que seja Congresso Nacional. 
Informado apenas por revistas infantis, não se interessa por saber e não sabe o que se passa no Vietnã, guardando sérias reservas quanto à possibilidade de o homem chegar à Lua. É contudo, o líder de uma grande parcela da geração que assiste o desenvolvimento da técnica e que poderia ser a primeira a interessar-se pela extraordinária conquista do nosso século, como será o desembarque do homem na Lua. 
Deixa, inclusive, de ter semelhanças com o conjunto dos «Beatles», ao demonstrar seu desinteresse pelo mundo em que vive. Isto porque o conhecido conjunto inglês, em recente entrevista concedida em Tóquio, tomou posição numa das mais controvertidas questões internacionais. Interrogados sobre o que achavam da política norte-americana no Vietnã, os «Beatles» afirmaram que os Estados Unidos nada têm a fazer naquela região do sudeste asiático, tendo John Lennon - um dos quatro afirmado que eles pensam todos os dias nisso e que não concordam com o que está acontecendo. 

c) Lideranças sem perspectivas 
Na realidade, Roberto Carlos surgiu porque, à semelhança da disponibilidade - de liderança existente entre os adultos, ocorre outra entre os jovens. Há um desacerto, uma insegurança e uma falta de perspectiva para a juventude brasileira, ainda sofrendo as restrições de má formação cultural e sujeita aos choques familiares, pois os adultos insistem em manter padrões superados de comportamento, diante de uma nova realidade social. 
Escasseiam os líderes juvenis capazes, porque só se é líder quando se tem segurança. Apesar de sua ingenuidade diante da existência e de sua irresponsabilidade, Roberto Carlos está seguro nos padrões familiares que lhe foram legados. Os demais jovens, mesmo os intelectualizados, têm dúvidas e por isso não lideram. Outros são líderes apenas para grupos reduzidos, porque sua mensagem é muito elevada para ser entendida pela maioria. 
A conclusão de que Roberto Carlos encarna o espírito conservador e, por isso, exerce uma liderança aceita como benéfica pela sociedade constituída, chegou também o juiz da 12.a Vara Criminal de São Paulo, ao julgar o episódio em que o cantor teve de fazer alguns disparos para se livrar da ameaça de malfeitores. 
Citando inclusive alguns trechos de nossa reportagem «Juventude vive a rebelião romântica», publicada no jornal O Estado de São Paulo, e outros do jornalista Roberto Freire, foi o seguinte o despacho do meritíssimo juiz: 
«O moço, ao qual grande parte dos adolescente dedica intensa veneração, é fenômeno no momento, merecendo um estudo profundo dos entendidos. É claro que não é nos limites de uma sentença que se há de estudar sua personalidade. Psicanalistas e conhecedores das manifestações e relações sociais afirmam que este rapaz e todos os seus seguidores são jovens que adotaram a rebeldia do protesto. Eles têm nos «Beatles» um símbolo maravilhoso de rebelião contra a sociedade dos adultos. Esclarecem ainda que uma das causas dominantes do processo é o choque das gerações. Os mais velhos estão sempre em oposição ao que é novo, pois não querem abrir mão do que têm, sobre o que fundamentaram e justificaram toda a sua existência. Os antigos repelem tudo o que foge aos padrões tradicionais. 
Mas para ser o líder de uma parcela da mocidade, Roberto Carlos revelou-se possuidor de uma simpatia cativante. Para as moças o seu olhar triste, um ar de desamparado, mais o fato de ter sofrido um acidente e de parecer muito bom para seus colegas, provocam sempre uma atitude maternal. A música que interpreta pessoalmente assinala um espírito de revolta da juventude. Mas esta manifestação, pela sua falta de agressividade efetiva à sociedade estruturada, adquire feições típicas de uma rebelião romântica, consentida, permitida e até estimulada pelo mundo dos adultos. 
A influência que exerce sobre os que o seguem passa a ser benéfica. Pelo menos, até o presente momento, nota-se grande afabilidade de todos os que o cercam em torno de suas ações. Isto se poderá verificar facilmente. Em todas as manifestações de personalidades marcantes na vida social e política, a tônica é a da amizade e apreço pelo cantor. O Cardeal D. Agnelo Rossi o recebeu com muita cordialidade. A Câmara Municipal de São Paulo já lhe concedeu o título de Cidadão Paulistano. 
Sem dúvida, tais fatos revelam uma pessoa orientada para o bem. E, agora, a campanha que realiza em benefício dos pobres, conseguindo-lhes agasalho, alcança intensa repercussão pública.» 
Entretanto, apesar de todas as manifestações favoráveis ao jovem cantor parece que num ponto há concordância geral: sua liderança não apresenta quaisquer perspectivas para a mocidade. Talvez pelo fato de ele mesmo não se ter convencido da influência que poderia desempenhar entre uma juventude urbana que procura se encontrar. Ou ainda pela simples circunstância de não estar preparado para essa responsabilidade, pelo que seu movimento adquire feições apenas comerciais.

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