A REBELIÃO ROMÂNTICA DA JOVEM GUARDA
Escrito por Rui Martins
Publicado pela Editora Fulgor em 1966
CAPÍTULO V
UMA MÚSICA QUE SATISFEZ A TODOS
a) A reação dos adultos ao «vá tudo pro inferno»
Uma música em especial exerceu influência decisiva na aceitação do cantor Roberto Carlos pelos diversos grupos etários, tornando-o suficientemente conhecido e consolidando seu sucesso. «Quero que vá tudo pro inferno» chamou a atenção dos adultos para o cantor predileto de seus filhos, pelo fato de ter incorporado à sua letra uma imprecação, bastante usada, mas ainda recebida com certa reserva pelos mais velhos.
Passada, porém, a primeira impressão dos adultos, foram eles mesmos os principais divulgadores da composição que lhes possibilitava uma válvula de escape. O estribilho «e que tudo o mais vá pro inferno» deixou de ser apenas o encontro de uma boa rima para sintetizar o desinteresse da geração moça ante os padrões da sociedade constituída e o desencanto dos adultos diante de uma situação política que não evoluiu na medida de suas expectativas.
A composição, naturalmente, não foi intencional, contudo, incluiu uma frase que todos estavam pensando. A aceitação foi rápida porque todos reconheceram na letra da nova música um pouco de sua autoria, sentindo-se também co-autores.
O mandar alguma coisa para o inferno já faz parte das expressões brasileiras usadas normalmente e expressa bem a atitude de quem, impossibilitado ou cansado de fazer alguma coisa, dela se desinteressa. Tem força de imprecação e sempre revela um descontentamento ou desânimo.
Para os jovens, a expressão representou o retorno a uma posição individualista, de simples defesa dos próprios interesses. Contraposta, portanto, à precedente atitude de preocupação coletiva da «bossa nova», caracterizada por uma oposição construtiva. «Vá tudo pro inferno» sintetizou a posição do jovem que diante de problemas que lhe são apresentados, reage com um «que me importa?», numa demonstração de uma precoce acomodação, de um desinteresse por tudo aquilo que ultrapasse seu desejo de ser «aquecido no inverno», ou seja, de ter suas necessidades individuais satisfeitas.
Para alguns, os versos «quero que você me aqueça neste inverno e que tudo o mais vá pro inferno» revelam, também, uma irresponsabilidade ética diante do amor, considerado como uma simples aventura temporal e inconseqüente. Nesta interpretação, a atitude imediata, é uma outra demonstração do revigoramento do individualismo entre a juventude «ié-ié-ié».
Entre os adultos, todavia, o motivo determinante da aceitação da música, está ligado à necessidade de desabafo e, de algum modo, a frustrações de ordem política. A classe média, principalmente, que desempenhou papel relevante no movimento contrário ao governo Goulart, não se considera satisfeita com a situação atual e não esconde suas decepções. Isto porque esperava, de imediato, uma atitude mais drástica do governo para com os corruptos e porque se vê atingida, em cheio pela política econômica, responsável pela redução do seu poder aquisitivo.
Assim, os adultos juntaram-se aos jovens no cântico -da melodia que lhes permitiu externar um pouco do seu sentimento. A questão da disponibilidade de liderança aqui também Se aplica, pois os seguidores dos líderes esvaziados unem-se aos" demais e também desejam que «tudo o mais vá pro inferno»,' numa demonstração de desinteresse.
b) Desafogo e solidão
Depois, há problemas de outra ordem. A população urbana, contida em apartamentos pequenos, apertada nos coletivos, posta em filas de cinemas e teatros e, ainda sofrendo as conseqüências da falta de planejamento das grandes cidades, precisa desabafar para poder sobreviver. O desabafo do «vá tudo pro inferno», embora nada solucione, traz um certo alívio da tensão diária para aquele que, mesmo em casa, não pode se- descuidar para não incomodar o vizinho que vive sob o seu apartamento.
Acrescentam-se ainda, os problemas próprios do trabalho, o trânsito que congestiona, a água que falta, o telefone que não dá linha ou o ônibus que não pára e passa lotado, tudo num desafio constante ao habitante da cidade grande. Para a juventude, além desses problemas, há o da dificuldade de diálogo com a geração de seus pais.
Criados numa fase em que o mundo se desenvolve abruptamente no campo da tecnologia e da ciência, os jovens têm uma nova compreensão da vida, bem diferente da que tiveram e ainda têm os adultos. Daí, sentirem-se incompreendidos e sozinhos na cidade que tem excesso de população.
A mesma composição que manda «tudo pro inferno» fala, também, na existência dessa solidão entre os jovens. «Onde quer .que eu ande tudo é tão triste» e o lamento de que a «solidão me dói» certificam a existência na juventude de um vazio, nascido da incompreensão. Parece que a mocidade não tem recebido a atenção, a assistência e o carinho devidos pelos pais e adultos a ela mais achegados.
Procuram, então, chamar a atenção sobre sua tristeza, enquanto explicam que de pouco lhes vale as vantagens de uma vida de «play-boy» e as facilidades proporcionadas pela posse de um carro, se a solidão lhes acompanha e torna a sua existência fria, como um inverno. O inverno não seria, portanto, a estação do ano em que o jovem deseja ser aquecido, mas a metáfora encontrada para designar a sua situação solitária e a frieza conseqüente da falta de afeto.
A composição que exerceu o papel preponderante na ascensão e êxito de Roberto Carlos parece ter resumido, de forma bastante feliz, as diversas tendências e anseios da juventude e da maioria dos adultos. O verso rebelde e irreverente, o desinteresse, o individualismo, a acomodação, o lamento e a petição de afeto e carinho coexistem na mesma melodia.
Comentários do Barbieri
Eu comprei este livro num sêbo perto da Praça da Sé em São Paulo lá pelo princípio de 1980. Este livro acabou vindo para Londres onde vivo e agora faz parte da minha bibliotéca. Paara colocá-l aqui neste site, com um scanner "escaneei" todas as páginas do livro, incluindo a capa e, depois usei um programa OCR (optical caracter recognizer) para checar todas as página usando um programa de inteligêcia artificial e assim transformar os "scans" num documento em Microsoft Word. Como o texto do livro foi encrito nos anos 60, com o Word fiz a correção do texto. O texto então foi reeditado para este web site. Todo cuidado foi tomado para evitar problemas horotgráfico e de compreenção de texto. Se o caro leito encontrar algum problema ficarei feliz em ser comunicado para poder fazer a correção.
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