12 de set. de 2011

AS REBELIÕES JUVENIS CONTEMPORÂNEAS - Por Rui Martins


A REBELIÃO ROMÂNTICA DA JOVEM GUARDA
Escrito por Rui Martins
Publicado pela Editora Fulgor em 1966

CAPÍTULO I
AS REBELIÕES JUVENIS CONTEMPORÂNEAS

a) Oposição natural nas sociedades urbanas
Uma franca hostilidade juvenil aos padrões da sociedade organizada, em busca de novos valores, parece ser a constante na maioria dos países do mundo contemporâneo. Demonstrando possuir uma posição independente diante da existência, os jovens desafiam a validade das estruturas aceitas pelo mundo adulto e, não raro, promovem manifestações, nas quais deixam bem patente essas discordâncias.
Essa oposição, em muitos casos, é bastante compreensível, pois ~ natural que as novas gerações não aceitem passivamente as estruturas, costumes e convenções observados pelos que as antecederam. De certa forma, esse comportamento rebelde contra a experiência dos adultos parece ser uma maneira encontrada pela natureza para permitir a renovação da sociedade e possibilitar-lhe a observância de uma dinâmica que os velhos conservadores jamais permitiriam.
Cada geração, então, no esforço que despende antes de se integrar no mundo dos adultos, provoca, como conseqüência dos atritos surgidos, a formação de um clima propício a uma nova compreensão de determinados fatos por toda a sociedade. Essa regular reinterpretação e reconsideração pela sociedade de fatos e conceitos, até ali tidos como definitivos, seria a grande contribuição da juventude no sentido de impedir a estratificação social. O sangue novo funcionaria, assim, como uma espécie de revitalizador.
Nas sociedades urbanas industriais ou em industrialização, a influência da mocidade faz-se sentir de forma ainda mais marcante. O fenômeno dos grandes aglomerados urbanos é uma novidade que a raça humana só veio a conhecer no nosso século. Isto equivale a dizer que, nas urbes, onde os valores tradicionais de comportamento se desatualizam, com a sociedade dos adultos aturdida e debaixo do impacto de uma nova maneira de conviver, os jovens destroem tabus seculares preservados pelas comunidades que tinham a seu favor um perfeito aparelho de compulsão social.
Nos grandes centros urbanos, tudo se dilui, não havendo mais possibilidade do controle rígido do comportamento de seus habitantes como ocorria nas antigas organizações sociais. Os próprios membros mais conservadores da nova sociedade percebem que vivem uma nova situação, diferente daquela compreensão rural de existência que possuíam. Conscientes, portanto, de que seus antigos padrões e conceitos estão sendo superados, os mais conservadores se chocam e se desarticulam, sem saber como enfrentar a nova situação. A maioria rebela-se contra esse novo tipo de organização social, que consideram desumano e destrutivo, porém, o processo é irreversível e a cada dia mais populosos se tornam os centros urbanos, num mundo em explosão demográfica e em franca expansão industrial.

b) O mundo autônomo da juventude
Nesse momento histórico de transformação, a juventude aproveita-se dos desencontros existentes no mundo dos adultos para demonstrar seu inconformismo e seu desinteresse por esquemas forjados de comportamento. E, então, difíceis de controlar porque são muitos, os moços aturdem e agridem a sociedade com atitudes ousadas. Criam um mundo autônomo, cuja ideologia é a franca oposição a tudo quanto esteja aceito como definitivo.
Nesse mundo autônomo, a todo instante é aumentado de novos componentes, ao mesmo tempo, que dele saem todos aqueles jovens ingressantes na «vida séria» dos adultos, recém-engajados no esquema de produção da sociedade. Para estes, a necessidade de produzir para sobreviver determina sua integração social. A partir desse momento, têm de adotar a linguagem, os modos, os trajes aprovados pelos adultos para conseguir sua confiança. Em pouco tempo, integram-se de tal forma no novo ambiente que a incerteza inicial da juventude é esquecida, passando a encontrar nos ideais defendidos pela sociedade os seus próprios ideais de existência.
Entretanto, o mundo dos jovens, constantemente renovado, permanece sempre irrequieto como um foco constante de preocupações. Naturalmente, têm os jovens razões suficientes para demonstrar seu descontentamento perante a sociedade. Há uma natural dificuldade para compreender a razão de sua presença num mundo cada vez mais conturbado.
Até há algum tempo, a religião resolvia o problema, apresentando aos jovens soluções para as suas perguntas de conteúdo metafísico. A juventude atual, porém, não se satisfaz facilmente com as explicações que confortaram as gerações passadas. De fato, o mundo mudou, criando com o seu fantástico desenvolvimento técnico e científico as bases para o ceticismo. Não um ceticismo definido, consciente, mas de atitudes.
A maioria dos jovens não rompe seus vínculos tradicionais de religiosidade, apenas os relega a um plano secundário. Mantêm como herança atávica o medo do sobrenatural e por isso não o desafiam, embora também não o cultuem, porque desconfiam da veracidade das soluções que a religião apresenta. Nascidos numa época de fatos concretos, de experiências de laboratório, de milagres visíveis, não conseguem aceitar verdades que a razão não pode explicar.
A natural dificuldade do jovem compreender sua presença no mundo é agravada, também, pelas próprias contradições da sociedade. Encontrando toda uma estrutura já montada, a juventude resiste para aceitá-la, pois o idealismo que a caracteriza não pode compreender os vícios da engrenagem que os adultos permitem existir. Não podem compreender que tenham de aceitar como seus mentores aqueles que têm falhado ao consentir na formação de uma sociedade egoísta, materialista e por isso corrupta. Não entendem, igualmente, a manutenção dos preconceitos de raça, de cor, de crença ou de classe, porque no seu mundo juvenil prepondera a fraternidade, desconhecendo-se as diferenças, pois elas foram diluídas no fato principal de tf)dos serem moços desejosos de grandes mudanças.
Há, ainda, uma razão de ordem emotiva, consubstanciada na resistência dos jovens em aceitar uma sociedade dominada pela técnica e pelas máquinas, causadora, desta forma, da despersonalização de seus membros. O exato, o certo, o calculado dentro de um esquema considerado perfeito, ofende, nos aglomerados urbanos, o instinto criador da juventude, amante das tentativas e das inovações.
Sentindo-se ameaçados pelo perfeccionismo das máquinas, os jovens buscam uma afirmação maior no seu mundo juvenil que consideram mais humano porque menos controlado por fórmulas ou mecanismos de precisão. São individualistas e, por essa razão, lutam contra a possibilidade da estandardização, resistindo a uma sociedade que despreza o seu romantismo.
Sentem que neles está a esperança de um mundo novo e sonham com o instante em que convencerão a todos de que viver é a coisa mais importante da existência. Longe das preocupações de ordem econômica mais imediatas, detestam aqueles que as têm e adotam como princípio o desperdício.

c) A mocidade nos países subdesenvolvidos
Esses comportamentos até aqui citados são, naturalmente, próprios de mocidade que vivem em centros urbanos de regiões desenvolvidas, onde as diferenças sociais não são tão marcantes e a classe média reúne a maioria da população.
Nas regiões subdesenvolvidas, a integração do jovem na sociedade chega a ser dolorosa, pois ele sente o distanciamento das classes e a quase impossibilidade de superá-lo. Os pertencentes às classes menos favorecidas têm uma participação muito pequena no mundo dos jovens, obrigados que são, ainda adolescentes, a produzir para ajudar a subsistência de suas famílias.
Da absorção do trabalho poucas energias lhes restam depois para grandes exteriorizações. O trabalho também os afasta da cultura, pelo que, não são estes os jovens que podem manifestar sua indisposição aos padrões dos adultos. Precocemente se tornam sérios e assumem responsabilidades que os integram, rapidamente, no mundo adulto da classe a que pertencem.
Daí, serem mais conservadores e mais identificados com os adultos, pois a luta diária pela sobrevivência e o tipo de necessidades que têm são iguais para ambos. Por isso, serem as classes pobres, nos centros urbanos, as mais zelosas pelas tradições, mantendo com fidelidade suas crenças, festas, músicas e superstições sem grandes mudanças. Os morros cariocas são um exemplo vivo, no zelo com que pais passam para filhos o amor pelo samba que, anualmente, trazem para as ruas. Embora a influência da televisão seja um fato novo a considerar, as diferentes vogas estrangeiras não chegam a atingi-los com violência.
O movimento juvenil fica restrito, portanto, a dois principais: o dos jovens classe média (pequena burguesia) e o dos jovens ricos (alta burguesia). Por ser a classe média aquela em que seus componentes aspiram e imitam os da classe superior, parece ser mais difícil a integração na sociedade dos jovens a ela pertencentes. Mantidos e sustentados pelos pais até uma certa idade para que estudem, convivem nesse período com os colegas mais abastados, participam de suas aspirações, têm os mesmos gostos, tornando-se difícil para eles o instante em que devem retornar à realidade. Assim, enquanto os jovens dos países desenvolvidos podem desfrutar de uma série de comodidades, embora exista a possibilidade de uma guerra que lhes tira um pouco da fé no futuro, a maioria dos jovens dos países subdesenvolvidos contenta-se em conviver ou procura imitar os amigos mais privilegiados, conscientes, entretanto, da própria situação.
Essa a razão porque, nestes países, é comum a mocidade promover e participar de movimentos políticos, nos quais injeta todo dinamismo mas, ao mesmo tempo, toda a sua inconstância juvenil. Assim, ocorre, freqüentemente, que jovens mais privilegiados ao verificarem que seus companheiros lutam com dificuldades se revoltam contra a sociedade, unindo-se a eles nos seus movimentos de protesto.
Na maioria das vezes, falta-lhes o lastro necessário, bastando que assumam seus postos no mecanismo da produção para passar-lhes como por encanto todo o ardor revolucionário. Os seus companheiros, aspirantes da situação privilegiada, cessam igualmente seus ardores para que não aconteça terem de entregar alguma boa posição depois de a conquistarem com esforços.
A incoerência dessas atitudes explica-se pelo fato de ao ideal defendido não corresponder uma realidade efetiva. O desejo de ser diferente, o gosto da aventura e a vontade de agredir os padrões vigentes são, porém, satisfeitos na militância de uma posição tida como perigosa que põe, inclusive a família, em polvorosa. A verificação, posterior, diante de fatos concretos de que a conjuntura social lhes pode ser vantajosa, é suficiente para liquidar com suas teorias idealistas.
Entretanto, quando a situação não favorece a participação em movimentos nacionais de rebeldia, a juventude desses países adota tomo seus os movimentos originários de regiões desenvolvidas, numa tentativa de vertê-los para o mundo em que vivem. As condições diferentes de existência revelam, porém, a artificialidade do movimento. me é simples conseqüência do mimetismo e do desejo de novidades, além de permitir aos jovens uma identificação de atitudes com os companheiros das regiões mais evoluídas. Naturalmente, os meios de comunicação exercem preponderante papel na divulgação desses movimentos no âmbito global, dando uma característica internacional às grandes mobilizações juvenis.

d) Três tipos atuais de manifestações juvenis
Considerando os últimos movimentos juvenis registrados no mundo, poderemos afirmar que os mesmos estão divididos em três categorias principais. Manifestações de rebeldia com propósitos bastante definidos que afetam a estrutura política ou social das regiões em que ocorrem; manifestações marcadas pelo «non sense» e destituídas de objetivo, nas quais a juventude revela uma espécie de prazer sádico em afrontar o mundo dos adultos, sem quaisquer objetivos reformadores da estrutura social; e manifestações destituídas de periculosidade, nas quais a juventude reveja possuir uma ingenuidade e um ideal de pureza inesperados, como se quisesse mostrar ao mundo serem os seus princípios mais sadios que os dos adultos.
Quando estudantes norte-americanos fazem passeatas contrárias ou favoráveis ao envio de tropas ao Vietnã, quando tomam posições quanto ao problema do preconceito racial ou quando estudantes de qualquer país promovem greves de protesto, exigindo reformas de ensino ou qualquer outra medida, estão, de forma certa ou errada, tomando posições definidas e também válidas, diante de problemas que lhes dizem respeito. A energia que possuem é canalizada numa direção determinada, tornando-se o protesto não simples rebeldia natural, mas o fruto da necessidade de uma tomada de posição. As próprias manifestações artísticas refletem essa tendência, apoiando a juventude os artistas que externam seu estado de espírito. É o caso de Joan Baez, nos Estados Unidos, que transforma todos seus espetáculos numa demonstração hostil à política externa dos Estados Unidos.
O exemplo típico da outra espécie de rebeldia, a chamada «sem causa» ou mais corretamente sem objetivos, é a dos «play-boys» ou transviados. Esta consiste em negar o sistema naquilo que ele tem de menos essencial, espécie de substituição do conformismo abúlico da apatia pelo conformismo dilacerante da rebeldia. Embora rechaçada pela estrutura social em que se manifesta, não afeta nenhuma instituição e, por isso mesmo, não conduz a coisa alguma.
Há, por último, a manifestação juvenil que, pela sua falta de agressividade efetiva à sociedade estruturada, adquire feições típicas de uma rebelião romântica, consentida, permitida e até estimulada pelo mundo dos adultos. Como a anterior, não leva a caminho algum, tem, porém, uma característica que a diferencia: um anseio de bondade e de pureza contraposto à violência. A necessidade de agredir destes jovens satisfaz-se com a adoção de outros padrões no que diz respeito à vestimenta e à apresentação pessoal. No mais, o protesto é vazio, destituído de conteúdo, revelando na juventude um desinteresse por qualquer coisa séria, donde a impossibilidade de tomadas de posição. Esse desinteresse provém em grande parte, da própria situação atual do mundo, no qual os jovens, apesar do seu anseio de viver, sentem-se inseguros por não encontrarem um clima de segurança para o futuro da humanidade. Os jovens cheios de energia entregam-se, então, aos ritmos frenéticos como que tomados pelo mesmo delírio das máquinas.
Esta interpretação seria, em parte, válida para o fenômeno dos «Beatles», na Europa, entretanto, não explicaria convenientemente o fenômeno do «ié-ié-ié» no Brasil, onde há ainda uma série de outras circunstâncias que contribuíram para o seu aparecimento.

A REBELIÃO ROMÂNTICA DA JOVEM GUARDA
Escrito por Rui Martins
Publicado pela Editora Fulgor em 1966

CAPÍTULO II
OS ADULTOS E SUA INTEGRAÇÃO NO MUNDO JUVENIL

a) Causas e disponibilidade de liderança
Até aqui se procurou dar uma visão do significado das rebeliões juvenis dentro da sociedade, demonstrando-se que, à simples e natural oposição aos padrões estabelecidos pelo mundo dos adultos podem juntar-se outros fatores circunstanciais. O surgimento dos grandes aglomerados urbanos veio agravar, de certa forma, o choque de gerações, permitindo à juventude novas maneiras de hostilizar os costumes e convenções defendidos pela sociedade. A conquista de uma certa independência, permitiu aos jovens a tomada de posições e a participação em movimentos de protesto com objetivos bastante definidos. Este, porém, não é o caso do «ié-ié-ié« nacional que, destituído de qualquer agressividade ou objetivo é considerado uma autêntica rebelião romântica, sem maiores conseqüências.
Sabendo-se, contudo, que a nova manifestação musical atinge, no Brasil, também adultos e crianças, surge a necessidade de encontrar-se as determinantes dessa aceitação. Como todo fenômeno social, esse comportamento não deve ser provocado pela ocorrência· de uma única circunstância causal, mas ser o resultado de todo um complexo no qual se interligam anseios, expectativas, frustrações e tendências diante de Jatos consumados. Apontar as causas responsáveis, torna-se, por isso, uma atitude temerária, mormente quando não se pode recorrer a dados concretos fornecidos por pesquisas. Serão, portanto, discutidas as causas prováveis do fenômeno, podendo todas elas serem válidas e terem, ao mesmo tempo, contribuído para sua ocorrência.
Inicialmente, a adesão maciça em torno do jovem cantor parece indicar a existência, no País, de uma disponibilidade de liderança, da qual resulta um vazio que conduz todos a atitudes irracionais. Apesar dos esforços despendidos, os atuais governantes não conseguiram atrair para si o entusiasmo popular. São públicas as declarações do chefe do governo de que sua administração tem aspectos impopulares, sabendo-se que suas medidas de ordem econômica provocam, geralmente, desagrado geral.
Conduzido ao poder na crista de um movimento vitorioso, o atual presidente não possuía um anterior lastro de popularidade que o levasse ao exercício de uma liderança consentida. Recebido com satisfação por uns e com indiferença ou hostilidade por outros, não conseguiu se transformar, nestes dois anos, naquele líder que o povo se acostumara a ter. Esse costume criou-se na longa ditadura de Getúlio, cujo paternalismo satisfazia as necessidades de liderança do povo, enquanto impedia a formação de outros chefes políticos.
A queda do Estado Novo encontrou o País numa crise de líderes, pelo que o povo, nas primeiras eleições, recolocou no poder aqueles que satisfaziam sua necessidade de tutela. O povo revelava, nessa atitude, uma tendência para formas de governo autoritário, como resultado do longo aprendizado. Porém, o exercício da democracia foi, lentamente, corrigindo essa tendência, embora continuassem a existir poucos líderes. Acreditava-se, então, numa gradual libertação popular da necessidade dos líderes carismáticos e no aparecimento de maior número de políticos capazes de exercer liderança.
Entretanto, após os episódios de 1964, seguiu-se um gradativo esvaziamento dos poucos líderes populares, não só os de esquerda como seria inevitável, como também os de direita e centro. Paulatinamente, Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Carvalho Pinto e Adhemar de Barros foram sendo postos de lado pelo novo esquema, participando, de certa forma, do mesmo ostracismo de Juscelino, Jânio e outros, cujos direitos políticos haviam sido cassados, de imediato.
Em contrapartida, não se ofereceu ao povo nenhuma figura popular de projeção nacional, o que determinou a atual disponibilidade de liderança. A subseqüente reforma eleitoral, instituindo o voto indireto para a escolha dos ocupantes dos cargos majoritários, teve efeitos semelhantes aos dos esvaziamentos, ressentindo-se o povo de ter sido posto à margem na escolha de seus governantes. Disso, proveio um indisfarçável desinteresse pelas coisas políticas. Esse vazio, contudo, precisava ser preenchido. Havia necessidade de acreditar-se em alguém ou em alguma coisa.
Surgiram, nesse momento, diversos agentes catalisadores destacando-se, entre eles, pela !lua importância a passada voga das telenovelas. Considerando-se, superficialmente o problema, não se compreende como telenovelas de pouco conteúdo humano e mínima expressão artística puderam ser tão aceitas a ponto de mudar hábitos familiares. esse comportamento irracional foi, entretanto, a exteriorização da necessidade do preenchimento de um vazio geral. A identificação com os heróis e situações da trama propiciou, além disso, uma reconfortante fuga às inquietações.
No caso do «ié-ié-ié», o cantor Roberto Carlos preencheu a disponibilidade existente, embora comandando um simples movimento musical. Sua inconseqüência veio ao encontro do desinteresse reinante, enquanto sua música permitiu «mandar tudo pro inferno».

b) Aparecimento da consciência de massa
Pela segunda hipótese, o fenômeno Roberto Carlos seria a manifestação de um estado particular de consciência coletiva nos meios urbanos. Esta explicação não subestima a importância do tipo físico do cantor, da música, da televisão e dos interesses econômicos a ela ligados, porém, ajunta a estes fatores a influência decisiva da existência de uma sociedade de massas no País. Assim, idêntica à manifestação dessa situação no plano político, caracterizada no chamado populismo, estaria ocorrendo outra, agora, no plano da arte popular, confirmando estar concluída a formação de uma consciência de massa no Brasil.
Essa consciência de massa é capaz de reagir e se movimentar em termos de valores e estímulos os mais elementares.
O exemplo típico seria o movimento populista de Jânio, cujo símbolo era uma vassoura, perfeitamente compreendida como instrumento de limpeza, num instante em que uma parcela da massa desejava um moralista enérgico.
No populismo, o único vínculo consciente que existe para a massa é a imagem do líder que transcende os conteúdos ideológicos da relação. A pessoa do chefe torna-se a representação de um senhor poderoso ao qual seus seguidores se submetem. No caso de Jânio, era mais importante sua representação de homem duro, moralista enérgico, reservado e quase inacessível, do que sua posição diante dos problemas sociais ou políticos. Portanto, a predisposição de uma consciência de massa é para a aceitação de líderes carismáticos, forma irracional de liderança política.
Aliás, o sociólogo Karl Mannheim, na sua obra O Homem e a Sociedade, ao se referir à possibilidade da verificação das origens dos elementos racionais e irracionais na sociedade moderna, coloca a questão nos seguintes termos:
«A sociedade moderna, que no curso da industrialização racionaliza um número cada vez maior de pessoas e de esfera da vida humana, reúne grande massa de gente em enormes centros urbanos. Sabemos agora, graças a uma psicologia absorvida pelos problemas sociais, que a vida entre as massas de uma grande cidade tende a tornar as pessoas muito mais passíveis de sugestões, explosões incontroladas de impulsos e regressões psíquicas do que as pessoas organicamente integradas e firmadas em tipos de grupos menores. Assim, a sociedade de massa industrializada tende a produzir um comportamento muito contraditório, não só na sociedade, mas também na vida pessoal do indivíduo».
«Como sociedade industrial em grande escala, cria toda uma série de atos que são racionalmente calculáveis no mais alto grau e que dependem de toda uma série de repressões e renúncias de satisfações impulsivas. Como sociedade de massas, por outro lado, produz todas às irracionalidades e explosões emocionais características das aglomerações humanas amorfas. Como sociedade industrial, aperfeiçoa o mecanismo social de modo que a menor perturbação irracional pode ter os efeitos mais remotos, e como sociedade de massa, favorece um grande número de impulsos irracionais e de sugestões, provocando uma acumulação de energias psíquicas não sublimadas que, a todo o momento, ameaçam esmagar a sutil maquinaria da vida social». Mais adiante, Mannheim acentua que «o irracional nem sempre é prejudicial, mas que, pelo contrário está entre as forças mais valiosas do homem, quando age como força motriz no sentido de finalidades racionais e objetivas, quando cria valores culturais pela sublimação ou quando, como puro impulso, intensifica a alegria de viver sem romper a ordem social com a falta de planejamento. De fato, mesmo uma sociedade de massas corretamente organizada leva em conta todas essas possibilidades de condicionamento de impulsos. Deve, realmente, criar uma saída para um desabafo de impulsos, já que a objetividade da vida quotidiana, provocada pela racionalização generalizada, representa uma repressão constante de impulsos. É sob esse ângulo que a função do «esporte» e das «comemorações» na sociedade de massas, bem como dos objetivos culturais mais gerais da sociedade devem ser entendidos».
Entretanto, o sociólogo lembra a possibilidade de surgir um perigo específico da irracionalidade e explica: «numa sociedade em que as massas tendem a dominar, as irracionalidades que não tiverem sido integradas na estrutura social podem abrir caminho na vida política. Esta situação é perigosa porque o aparato seletivo da democracia de massas abre as portas para as irracionalidades precisamente nos pontos onde a direção racional é indispensável. Assim, a própria democracia produz sua antítese e proporciona armas aos seus inimigos».
Logo, a formação de uma consciência de massas teria possibilidade de, repentinamente, evoluir para um estado em que se lançam os pré-requisitos de uma ordem política de tipo autoritário, baseada no irracional com seus mitos e símbolos. De acordo com esta hipótese, o movimento Roberto Carlos poderia, então, revelar uma disponibilidade do povo para a aceitação das palavras de ordem de índole autoritária.

c) Influência dos meios mecânicos de comunicação
Outro fator determinante do prestígio desmedido de Roberto Carlos parece estar diretamente ligado aos meios mecânicos de comunicação, no caso a televisão, capaz de levar a todos os lares imagens de pessoas que agem como seres presentes. Deve-se assinalar que esses meios de comunicação despertam um certo fascínio sobre as pessoas, justamente pelo fato de serem mecânicos e terem, por isso, alguma coisa de extraordinário. A televisão como meio mais miraculoso e mais difundido torna-se, então, uma técnica capaz de criar padrões para a sociedade. Embora passível de crítica, qualquer coisa que apareça na televisão passa a ser considerada como possuidora de um mínimo de aceitabilidade e um certo grau de importância. Daí, sua influência sobre as nossas populações urbanas, onde praticamente todos os lares possuem e assistem, religiosamente, programas de televisão.
Dessa forma, a televisão pode repetir, em escala muito maior, a formação de imagens e ídolos, como ocorreu com o cinema e o rádio. Foi o cinema mudo que permitiu o aparecimento do mito Rodolfo Valentino e o cinema falado, Frank Sinatra. No rádio brasileiro, surgiu Orlando Silva, figura que provocava grandes manifestações entre o elemento feminino.
A televisão tem ainda a força de integrar no universo familiar aqueles que projeta no seu vídeo. As pessoas aceitam e incluem entre seus heróis os tipos que, por um processo de seleção, vão considerando ideais. Esses heróis tornam-se pouco a pouco quase reais, pois podem ser vistos e ouvidos dentro dos próprios lares. Cria-se assim a necessidade do encontro periódico entre o espectador e o seu herói.
Naturalmente, a televisão não pode ser encarada como uma simples criadora de figuras de compensação para todos os espectadores. Haverá sempre aqueles que não se deixam influenciar pelo fascínio do aparelho e poderão escapar, por isso, da tentação de projetar seus anseios em alguma figura particular. Entretanto, para a maioria é indispensável o encontro periódico. Não como conseqüência do exercício de uma crítica que permite a escolha de bons programas, porém, como possibilidade para satisfação de necessidades íntimas, geralmente inconscientes. Para promover os encontros periódicos, surge a propaganda, cujo objetivo é o de criar afinidades entre imagem e espectador com vistas a promoções comerciais ou utilizar as imagens já bem recebidas pelos espectadores para fins publicitários.
O cantor, ator ou animador não é o produto que a propaganda quer vender. me vai ser o instrumento para a publicidade tornar conhecido e vendável determinado produto. Assim, geralmente, a propaganda tem de criar primeiro a imagem para de. pois usá-la a serviço de um produto. Entretanto, ocorrem, não raro, circunstâncias que permitem o aparecimento de imagens, ante as quais o público reage de modo favorável, por encontrar nelas a satisfação de certos anseios.
Nestes casos, a máquina publicitária não precisa criar, basta desenvolver a imagem para depois utilizá-la comercialmente. Contudo, há sempre a exigência de um deslocamento do interesse do público, da imagem para o produto, que nem sempre é conseguido. Verifica-se, constantemente, uma margem de perda consubstanciada nos que se fixam na imagem e não aceitam o produto.
Logo, o ideal seria encontrar-se uma imagem que, ao mesmo tempo, fosse produto. Impondo-se a imagem aos telespectadores estariam, automaticamente, criadas as condições para sua venda como produto.

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