- Capitulo 04 – A grande lavanderia
As ilhas que lavam mais branco.
As mudancas no mundo que revelaram
os caminhos do dinheiro da corrupcao,
do terror, do contrabando e do narcotrafico.
Introducao ao Citco, o navio pirata
que lava a grana do tucanato no Caribe
Um paraíso fiscal é, quase sempre, um pedaço de terra cercado por água e povoado por mais pessoas jurídicas do que por gente de carne e osso. É onde o dinheiro sujo, como ave migratória, pousa, repousa e segue adiante, com as impurezas originais já removidas.
Lá, acontecem outras bizarrices: as empresas são do tamanho de uma caixa postal, e as contas bancárias ocultam seus titulares. São paraísos para o narcotráfico, o terrorismo, o tráfico de mulheres e o contrabando de armas. Lavam o dinheiro de todas as máfias e, também, aquele que provém da corrupção política. “A lavagem de dinheiro é a espinha dorsal do crime organizado”, garante o ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
“Hoje — diz — 70% do dinheiro lavado no país vem da corrupção e não mais do tráfico internacional de entorpecentes e do contrabando de armas e munição, como ocorria antigamente.”8
8 Artigo publicado no site Consultor Jurídico.
Fachada do escritório do Citco, nas Ilhas Virgens Britânicas, um dos locais onde o dinheiro da corrupção era internado. © Gustavo Terra Desses centros financeiros mundiais, 38 são ilhas. É mais da metade
dos países ou regiões autônomas que se dedicam à hospedagem vip da dinheirama de procedência desconhecida ou imprecisa.
Os valores transitam por empresas offshore, um termo que presta reverência aos velhos tempos dos corsários que saqueavam os mares e depositavam a pilhagem off shore ou fora da costa. Os tempos mudaram, mas os modos operantes continuam os mesmos.
Dificilmente uma offshore company movimenta milhões no mesmo paraíso em que está situada. Um exemplo: as contas dos doleiros do Banestado e de outros escritórios de lavagem de Nova York eram abertas sempre em nome de offshores nas ilhas Virgens Britânicas e em outros paraísos fiscais. Ou seja, embora situadas no Caribe, essas empresas centralizavam suas operações em bancos dos Estados Unidos.
O mesmo acontece com as contas movimentadas por políticos da América do Sul na Suíça e em outros refúgios fiscais da Europa. E qual o motivo que leva uma pessoa a abrir uma conta em um desses lugares? A isenção de impostos é algo tentador, mas os donos de offshores usam os paraísos fiscais principalmente como um biombo para proteger, manter suas identidades e ocultar dinheiro sem procedência.
Como lembra o delegado federal Rodrigo Carneiro Gomes,9 a principal característica de uma offshore é a portabilidade de títulos de propriedade (o cotista aparece apenas como portador das cautelas da empresa), o que mantém os verdadeiros donos em uma zona de sombra. Como veremos exaustivalmente ao longo deste livro, quando querem operar clandestinamente, principalmente em operações de repatriamento de dinheiro, os reais sócios das offshores aparecem apenas como procuradores de suas próprias firmas.
No submundo da lavagem de dinheiro, as offshores funcionam como empresas-ônibus. São chamadas assim porque, grosso 9 Do livro O Crime Organizado na Visao da Convencao de Palermo, de Rodrigo Carneiro Gomes.
modo, só exercem a função de enviar e trazer dinheiro do exterior.
Geralmente as procurações, em que os donos simulam serem somente representantes de suas próprias offshores, são assinadas pelos diretores dos escritórios especializados em abrir e operar esses empreendimentos.
As escrituras são lavradas quase sempre em consulados brasileiros nos Estados Unidos ou no Panamá. Lá, o documento recebe o selo dos paraísos fiscais, que mantêm em segredo a identidade de quem está verdadeiramente por trás do negócio.
As empresas são identificadas apenas pelo número de uma P.O. box, simplesmente uma caixa postal.
Com frequência, tais procurações são empregadas em operações nas quais os lavadores internam dinheiro de suas offshores em suas próprias empresas instaladas no Brasil. Disfarçadas como investidores estrangeiros, as offshores passam a adquirir cotas de firmas de seus próprios donos no Brasil. Como tudo não passa de um jogo de cena, a compra e venda pode ser marcada por aberrações e esquisitices. Não são raros os casos em que uma mesma pessoa assina, ao mesmo tempo, nas duas pontas dessas transações:
como procuradora da fora da costa e na condição de dona da empresa situada no Brasil, que passa a receber recursos de sua sócia no paraíso fiscal.
Quando quer pincelar o negócio com mais capricho e certo verniz de legalidade — a mesma ética, porém com um requinte a mais de estética — o proprietário vale-se de outra máscara: em vez dele mesmo, nomeia advogados ou parentes como representantes das suas offshores. É o modo mais utilizado, por exemplo, pelo presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Ricardo Teixeira. Em 2010, a rede de televisão britânica BBC acusou Teixeira, junto com seu ex-sogro, João Havelange, ex presidente da Fifa, de utilizar a offshore Sanud Etablissement para receber uma propina de R$ 15 milhões (US$ 9,5 milhões).
Segundo a televisão britânica, a grana teria pingado na conta da Sanud, situada no principado de Liechtenstein, conhecido paraíso fiscal europeu, por obra de uma empresa de marketing esportivo
em troca de contratos assinados com a Fifa.
Em junho de 2011, ao seguirmos as pistas da BBC, eu e os colegas da Rede Record Luiz Carlos Azenha e Tony Chastinet conseguimos obter documentos inéditos na Junta Comercial e em cartórios do Rio de Janeiro e na Suíça. Além de comprovarem a veracidade da denúncia, eles elucidam o percurso da propina. A papelada revela, por exemplo, que a Sanud havia se tornado sócia de Teixeira na empresa RJL Participações Ltda. Que, aliás, funciona no escritório de João Havelange no centro do Rio. Mais grave ainda: o procurador da Sanud na sociedade é o ex-bancário Guilherme Teixeira, irmão do manda-chuva da CBF. Ficou bem claro que a Sanud servia para lavar dinheiro em negócios de Teixeira. Essa tese foi reforçada quando obtivemos a listagem trazendo as datas dos pagamentos da propina, que revelaram as coincidências já esperadas.
A relação demonstra que o primeiro meio milhão de dólares foi pago à Sanud em agosto de 2002, um mês antes de a offshore tornar-se sócia da RJL. Imediatamente, a Sanud injeta R$ 2,8 milhões
na empresa de Teixeira. O dinheiro, justificado como aumento de capital integralizado pela Sanud, é investido numa fazenda do presidente da CBF em Piraí, interior do Rio. Um ano depois, a RJL coloca mais R$ 1 milhão em uma transportadora dos irmãos Ricardo e Guilherme Teixeira no mesmo município.
Em 1994, quando a Sanud continuava recebendo dinheiro em Liechtenstein, sua sócia no Brasil continuava apostando nos negócios de Teixeira. Documentação registrada em cartório atesta que, nesse período, a RJL colocou mais R$ 1,8 milhão no restaurante El Turf, aberto por Teixeira no bairro carioca do Jardim Botânico.
Outros papéis, levantados pela CPI da Nike, da Câmara Federal, que investigou em 2001 os negócios suspeitos da CBF e de Ricardo Teixeira, provaram que a integralização de capital da Sanud na RJL de fato nunca existiu. No balanço contábil, a RJL justifica R$ 1,8 milhão como empréstimo concedido pela Sanud. O problema é que o empréstimo nunca foi pago e tampouco cobrado.
Por mais bizarro que possa parecer, até pouco tempo transações desse tipo, maquinadas em famosos escritórios de advocacia tributária, movimentaram grande parte da lavanderia montada para
clarear e trazer ao país o dinheiro sujo escondido no exterior. Viraram-se uma febre porque emprestavam uma faceta legal ao serem registradas no Banco Central. Quando se associavam às empresas brasileiras, as offshores, além de receberem um CPF, tornavam-se aptas a trazer dinheiro do estrangeiro por meio de operações cambiais. E, nesse caso, o controle sobre tais operações é feito apenas por meio de amostragem...
As transações eram justificadas como investimentos em empresas brasileiras. Em outras palavras, uma fatia graúda dos recursos introduzidos no Brasil como sendo investimentos estrangeiros — em operações como essas ou transações casadas na Bolsa de Valores — não eram nada disso. Era tão somente o retorno, devidamente lavado, do dinheiro sujo da corrupção e do crime organizado, antes
hospedado nos paraísos fiscais.
A exemplo das offshores empregadas para branquear a fortuna do homem forte do futebol brasileiro, as operações acabam deixando suas pegadas pelo caminho. Ocorre que, seja na simulação de compra de ações de empresas nas juntas comerciais ou nas bolsas de valores, de uma forma ou de outra as mesmas pessoas ou grupos aparecem nos dois lados das transações. O entendimento dessa
premissa é passaporte indispensável para seguir no encalço dos corsários que lavaram o tesouro dos Privatas do Caribe.
Nos últimos anos, a pressão do G20 — o grupo das maiores economias do mundo — sobre os paraísos fiscais e operações dessa natureza cresceu, mas não exatamente por uma questão moral. Após constatarem que os diamantes provenientes das chamadas “minas de sangue” de Serra Leoa, na África Ocidental, e de outros países administrados por governantes corruptos estariam financiando o terrorismo, os países ricos exigiram a flexibilização do sigilo bancário para rastrear o paradeiro do dinheiro suspeito.
Iniciado na década de 1990, o cerco aumentou ainda mais com o lançamento de dois aviões contra as torres gêmeas do World Trade Center no dia 11 de setembro de 2001 e, após, com os atentados deflagrados por grupos fundamentalistas em estações ferroviárias de Madri e no metrô de Londres. A garantia de anonimato na abertura de offshores e de contas bancárias em paraísos fiscais sofreu significativo abalo em 1995 com a criação do chamado Grupo de Egmont.10 Esse agrupamento internacional congrega representantes das chamadas Unidades de Inteligência Financeira (Fius), abertas pelos governos de vários países para rastrear operações de lavagem de dinheiro. Em linhas gerais, os bancos passaram a ser obrigados a comunicar movimentações atípicas de seus correntistas aos bancos centrais e à unidade financeira de cada país. Protegido há séculos pelo sigilo, o correntista viu se, de repente, obrigado a explicar a origem dos valores sob suspeita aos gerentes dos bancos em paraísos fiscais. Mesmo os correntistas vips não demoraram a perceber que, se suas explicações não fossem satisfatórias, estariam em apuros junto ao Ministério Público e outras autoridades locais que certamente produziriam um relatório e o encaminhariam ao país de procedência do dinheiro suspeito. A unidade de inteligência no Brasil recebeu o nome de Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). É um órgão subordinado ao Ministério da Fazenda, que passou a integrar o grupo de Egmont a partir de 1999. As atividades do Coaf foram 10 O grupo ganhou esta denominação após encontro de representantes de unidades de inteligência financeira de diversos países no palácio de Egmont Arenberg, em Bruxelas, Bélgica. Da reunião, surgiu um grupo informal para estimular a cooperação internacional no setor. respaldadas pela carta circular número 2.852, de 03/12/1998, do Banco Central, que obriga os bancos e instituições financeiras a informarem as chamadas atividades atípicas de seus clientes no prazo de 24 horas. Como acontece nos paraísos fiscais, a clientela dos bancos tem a oportunidade de oferecer sua versão antes que o Coaf produza um relatório e peça a abertura de investigações ao Ministério Público e à Receita Federal.
As mudanças nas regras pegaram muitos figurões da América Latina com as calças curtas. No final da década de 1990, a unidade de inteligência financeira e as autoridades da Suíça — paraíso fiscal por excelência — entregaram de bandeja as contas do ex presidentes do Peru, Alberto Fujimori, e da Argentina, Carlos Menem. No Brasil, onde a rapinagem dos cofres públicos costuma andar lado a lado com a abertura de contas nesses céus particulares, descobriu se que os R$ 169,5 milhões que o juiz Nicolau dos Santos Neto desviou das obras de construção do prédio do Tribunal Regional do Trabalho (TRT), em São Paulo, estavam veraneando em bancos da Suíça, do Paraguai e do Panamá. Antes, logo depois que o banco Marka quebrou, em 1999, seu dono Salvatore Cacciola fez R$ 20 milhões se refugiarem nas Bahamas antes dele próprio fugir. Há mais gente. O banqueiro Daniel Dantas, segundo o relatório final da Operação Satiagraha, da PF, teria lavado dinheiro nas Ilhas Cayman por meio do Opportunity Fund. Um esquema de doleiros e empresas de fachada, operando à margem do Banco Central, enviou R$ 19,4 milhões ao fundo do Opportunity no paraíso fiscal. Outra investigação descobriu a fortuna do ex governador paulista Paulo Maluf (PP), depositada da Ilha de Jersey, sétimo céu financeiro no Canal da Mancha. No caso de Maluf, com base nesses relatórios, as autoridades públicas encontraram elementos para investigar a origem da bolada que foi parar em bancos suíços. Atento a essas mudanças no início do século atual, quando já investigava o dinheiro das privatizações, obtive furos de reportagem ao apurar situações de evasão de divisas e lavagem de dinheiro. Com a jornalista Sônia Filgueiras, colega de trabalho na IstoE, revelei com exclusividade, em janeiro de 2003, o escândalo da “Máfia dos Fiscais”, do Rio. A reportagem11 mostrou com detalhes como o ex subsecretário de Administração Tributária do Rio de Janeiro, Rodrigo Silveirinha Correa, e um grupo de auditores estaduais e federais, encarregados de fiscalizar empresas de grande porte, conseguiram remeter para a Suíça US$ 33,6 milhões desviados dos cofres públicos durante a administração Anthony Garotinho. Ao seguirmos os passos do doleiro Dario Messer, que ajudou a quadrilha de Silveirinha a enviar os recursos para o exterior, nos deparamos com um escândalo ainda maior: o caso Banestado, que expunha a gigantesca lavanderia montada por um consórcio de doleiros latino-americanos dentro da agência do banco estatal de Nova York.
Publicada em fevereiro de 2003, a reportagem sobre esse megaesquema de lavagem de dinheiro revelava que os doleiros haviam despachado US$ 30 bilhões ao exterior via agência nova-iorquina do Banestado. A reportagem provocou a abertura de duas CPIs — uma mista, no Congresso e no Senado; e outra na Assembleia Legislativa do Paraná — e resultou na prisão dos principais doleiros do país durante a Operação Farol da Colina, desencadeada pela Polícia Federal em agosto de 2005. A revelação levou também a Receita Federal a desencadear várias diligências e investigações que possibilitaram a recuperação, por meio de multas e autos de infração, de US$ 10 bilhões ao erário. Em agosto de 2005, após o então deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) revelar à Folha de S. Paulo o que foi definido como “Mensalão”, usei o mesmo raciocínio para encontrar o dinheiro da 11 A reportagem sobre a “Máfia dos Fiscais” recebeu várias premiações, entre elas o Grande Prêmio Embratel de Jornalismo. mesada que o publicitário Marcos Valério pagava à base política do governo no Congresso. Parti do pressuposto de que se existissem mesmo saques para o pagamento do “Mensalão”, com certeza haveria registro no Banco Central e o Coaf já deveria ter produzido um relatório sobre essas movimentações atípicas. Demoramos menos de cinco dias para localizar o relatório, que confirmava que assessores e pessoas ligadas ao propinoduto haviam sacado dinheiro em espécie das contas das empresas do publicitário mineiro. Apesar das mudanças e das medidas adotadas em todo o mundo, no Brasil o combate à lavagem de dinheiro ainda é dificultado pela fragilidade da legislação. A Lei 9.613/98, que tipifica o crime, relacionando-o à ocultação de bens, direitos e valores oriundos de crimes anteriores com o intuito de legalizar tal patrimônio, foi aprovada pelo Congresso em 1998. O texto legal classifica como lavagem de dinheiro “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente de crimes antecedentes” como narcotráfico, terrorismo, contrabando ou tráfico de armas e munições. Aponta ainda delitos antecedentes, aqueles que nos interessam aqui, realizados contra a administração pública e o sistema financeiro nacional, visando à obtenção de vantagens e praticados por quadrilhas ou indivíduos.
Seja qual for a natureza dos crimes, o Ministério Público e a Polícia Federal têm encontrado um grande obstáculo para colocar seus autores atrás das grades. O problema reside no entendimento jurídico de que o réu só pode ser condenado após a comprovação do crime antecedente. A tese parte do pressuposto de que somente é possível condenar alguém por lavagem de dinheiro oriundo do tráfico de drogas após a comprovação desse crime. Ou melhor, depois de firmada a vinculação do suspeito com o tráfico. Uma jurisprudência criada com base em decisão da 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região, publicada no Diario Oficial da Uniao no dia 3 de maio de 2006 acabou aliviando um pouco o trabalho desses investigadores. O TRF/4ª.
Região acatou o parecer do relator, desembargador Luiz Fernando Wowk Penteado, de que, para a caracterização da lavagem de dinheiro não é necessária a prova cabal do delito antecedente, bastando os indícios de sua ocorrência. Todo o imbroglio jurídico acontece porque a legislação específica do país já nasceu ultrapassada. É uma norma de segunda geração, aquela que só considera dinheiro sujo aquele originado dos crimes expressamente citados na lei. Só não consegue ser mais ineficaz do que a lei de primeira geração, que interpreta como contaminados apenas os valores oriundos exclusivamente do narcotráfico.
Países como França, Itália e Bélgica são regidos por uma lei de terceira geração. Sob esta legislação, são resultado de lavagem todos os recursos obtidos de qualquer tipo de crime. No Brasil, enquanto o Congresso Nacional não vota e aprova uma nova legislação, as operações em paraísos fiscais e de evasão de divisas têm sido punidas com base na Lei 7.492, de maio de 1986, ainda durante a presidência de José Sarney. Conforme o artigo 22 da chamada Lei do Colarinho Branco constitui-se crime, com pena de reclusão de dois a seis anos, efetuar operação de câmbio não autorizada com o objetivo de promover evasão de divisas do país. A mesma lei estabelece que incorre na mesma penalidade quem, a qualquer título, promover, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior ou nele mantiver depósitos sem declarar à repartição federal competente. Foi apoiado nessa legislação que o procurador da República Luiz Francisco de Souza logrou a condenação do empresário e ex-senador peemedebista Luiz Estêvão, acusado de participar do esquema que desviou R$ 169 milhões das obras do edifício do Tribunal Regional do Trabalho (TRT), de São Paulo. Curiosamente, o STJ absolveu parcialmente o ex-senador da acusação de evasão de divisas, mas manteve a condenação pela manutenção de depósitos não declarados no exterior.
Os manuais do ramo notam que a lavagem de dinheiro têm três fases: colocação, cobertura e integração. Na primeira, é preciso reduzir a visibilidade do dinheiro do crime, fracionando o e convertendo-o em outros valores por meio do sistema financeiro, bancos, bolsas de valores e casas de câmbio. É remetido para fora do país, transformado em cheques administrativos, mercadorias e empresas. Em um segundo momento, pratica-se uma cascata de operações financeiras intensas, complexas e rápidas, da qual participam pessoas físicas e jurídicas e paraísos fiscais. O propósito é afastar o máximo o dinheiro de sua procedência real. Tudo culmina, na terceira etapa, com o retorno do dinheiro ao circuito financeiro normal. Removido de suas impurezas, ganha o status de capital lícito, servindo para compra de bens e constituição de empresas. As offshores servem de ferramenta nos três estágios. Permitem as remessas ilegais ao exterior por meio de uma rede de doleiros e depois atuam na camuflagem e na limpeza por intermédio de operações de repatriamento de dinheiro.
Uma breve história da lavagem de dinheiro não pode dispensar um nome: Al Capone. Na vigência da Lei Seca (1920-1933), o rei dos gângsteres faturava US$ 100 milhões ao ano com bebidas alcoólicas e prostituição. Tanto dinheiro precisava de uma fachada legal para justificar tamanha fortuna diante do Fisco. Capone, então, teria montado uma rede de lavanderias, de onde derivaria o termo “lavar dinheiro”. É uma tese sedutora, mas de pouca credibilidade.
O certo é que Capone lavava seu dinheiro em muitos negocios tapume.
Certo também é que o crime organizado, em algum momento, aproximou-se de economistas, administradores, contadores, altos funcionários de bancos e homens de negócio para branquear a procedência suja de suas fortunas.
A sentença por evasão fiscal que fulminou Capone em 1931 alertou outro colega de profissão, Meyer Lanski,12 que o sistema deveria ser aperfeiçoado. Lidando com jogo, prostituição, drogas e extorsão, Lansky foi o criminoso pioneiro no uso de contas externas e offshores, remetendo fortunas para a Suíça e outros paraísos fiscais. Com isso teve início esta prática — a lavagem de dinheiro — e um tipo específico de empreendimento — as offshores — que com tantas virtudes na arte de iludir a Polícia e o Fisco, seduziram até a Máfia.
Mais de um terço dos paraísos fiscais está na América Central. É a maior concentração do planeta. Além do sigilo bancário e do desinteresse sobre a origem do dinheiro, a legislação complacente e a baixa tributação são iscas para fisgar riquezas bem ou mal havidas.
Por esta razão, em especial, calcula-se que 22% dos investimentos globais trafeguem através destes édens do dinheiro sob suspeição.
Uma estimativa da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) indica que a soma dos recursos escondidos nos paraísos fiscais alcança os 5,5 trilhões de euros.
As Ilhas Virgens Britânicas são um desses paraísos. Quando Cristóvão Colombo tornou-se o primeiro homem branco a avista las, em 1493, na sua segunda viagem à América, batizou-as exoticamente como “Santa Úrsula e suas 11 mil Virgens” que o tempo e a praticidade abreviaram para Ilhas Virgens.
Depois de Colombo, as ilhas passaram pelas mãos de espanhóis, holandeses, franceses, dinamarqueses, ingleses e norte-americanos.
Sempre foram um refúgio dos corsários que infestavam o Caribe.
Um deles, o holandês Joost Van Dyke, fundou a primeira povoação na Ilha de Tortola em 1615, uma comunidade de piratas holandeses, 12 Parceiro de Bugsy Siegel na transformação de Las Vegas na cidade do jogo, Lansky inspirou o
personagem de Hyman Roth, interpretado por Lee Strasberg, em “O Poderoso Chefão II”, de Francis Ford Coppola. No cinema, foi também protagonizado por Dustin Hoffmann, Richard Dreyfuss e Ben Kingsley. franceses e ingleses. Sete anos depois, reconhecido pela Companhia das Índias Ocidentais como o poderoso chefe local, Van Dyke fundou outra aldeia que viria a se tornar Road Town, hoje a capital das Ilhas Virgens Britânicas.
Atualmente, metade da arrecadação do governo local provém das taxas de licenciamento para as offshores. Extraoficialmente, mais de meio milhão delas já foram abertas nas Ilhas Virgens Britânicas. Essas pequenas empresas de fachada são administradas por escritórios ou instituições financeiras que nada mais são do que navios piratas encarregados de levar pelos continentes, por meio de suas offshores, o dinheiro da corrupção, do narcotráfico e do contrabando. Entre essas instituições, uma merecerá atenção especial neste livro: a Citco Building, em Wickams Cay, P.O. Box 662, Road Town, Tortola, Ilhas Virgens Britânicas, ligada ao Citco, grupo financeiro presente em 37 países e com 16 escritórios no Caribe. A cidade de Road Town e a Ilha de Tortola evocam o seu fundador e povoador, o bucaneiro Van Dike. Nota-se que a História, às vezes, gosta de observar sua própria marcha com certo humor irreverente...
Nas últimas duas décadas o escritório da Citco, em Road Town, atuou como um navio corsário que ajudou a chusma de doleiros que infestavam o Banestado no leva e traz de dinheiro sujo. Como já foi dito, as contas eram abertas em nomes de offshores administradas pelo banco estatal. O mesmo endereço na pátria adotiva de Van Dike acolheu também a grande lavanderia tucana. De certa forma, a Citco Building, por meio de suas offshores, ajudou os privatas do Caribe a repatriar o inheiro da propina das privatizações.
Quem ensinou o caminho da Citco foi o ex-tesoureiro de campanhas de José Serra e de FHC, Ricardo Sérgio de Oliveira, artesão dos consórcios que disputaram as estatais. Escritório especializado em abrir, acolher e operar offshores, a Citco é representada nos Estados Unidos por David Eric Spencer. Advogado norte-americano, casado com uma brasileira e fluente em português, Spencer trabalhou com Ricardo Sérgio no Citibank. Com o exemplo dado pelo tesoureiro do pai, Verônica Serra também rumou para a Citco. E também seu marido, Alexandre Bourgeois. E mais o ex-assessor de Ricardo Sérgio no Banco do Brasil e seu braço direito na Previ, o fundo de previdência do BB, João Bosco Madeiro da Costa.
Todos mandaram dinheiro para o mesmo escritório. A grande maioria enriqueceu pos-privataria... Uma década depois da avalanche privatista, são proprietários de empresas no Brasil e no exterior, possuem gordas contas bancárias, moram em mansões e são donos de terras. Fecharam empresas, sofreram processos judiciais e devassas fiscais, mas permanecem empresários de sucesso. Não é para qualquer um.
Tudo gente de fino trato, que jamais comete gafe na hora de escolher o vinho ou o talher. Lástima que tenham que conviver com outros clientes da Citco nas Ilhas Virgens Britânicas, caso de João Arcanjo Ribeiro, alcunhado “O Comendador”. Chefão do crime organizado em Mato Grosso, Arcanjo Ribeiro é acusado de sonegar R$ 840 milhões em tributos e de ter ordenado sete assassinatos. O que não tolheu a iniciativa da Assembleia Legislativa mato-grossense de obsequia-lo com o título de “Comendador”.
A mesma lavanderia prestou serviços ao narcotraficante Fernandinho Beira-Mar.
E também, é claro, ao banqueiro Daniel Dantas e a Ricardo Teixeira. Os documentos levantados pela CPI da Nike evidenciam que o presidente da CBF valeu-se da offshore caribenha Ameritch Holding para encobrir a compra de uma casa de luxo na Praia de Búzios. Dessa vez, além dos parentes, Teixeira usou os serviços de ex-sócios e advogados. Inicialmente, Otávio Koeper, um dos donos da Swap, corretora que operava para a CBF, simula a venda da residência para a offshore caribenha por míseros US$ 14,5 mil. Um ano depois, o mesmo imóvel foi repassado para uma corretora de familiares do megacartola do futebol brasileiro por R$ 500 mil. O uso das duas empresas — a offshore e a corretora — além de tentar sonegar a informação de que Teixeira era o feliz proprietário da mansão, ajudou a esconder a provável origem do dinheiro da compra: a própria corretora que prestava serviços para a CBF. O interminável presidente da CBF sempre negou ter empresas em paraísos do gênero, mas por causa de um ato falho, acabou pagando uma dívida de R$ 18 mil em impostos contraída pela Ameritch.
Isso prova o óbvio: ele é o verdadeiro dono da offshore caribenha.
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