21 de dez. de 2011

A PRIVATARIA TUCANA capitulo 05

  • Capitulo 05 – Aparece o dinheiro da propina
Dois depositos para Ricardo Sergio.
Revelado o dono da Infinity Trading.
Justica impoe a entrega do documento.
R$ 2 milhoes se desmancham no ar.
Quem e amigo mesmo dele e o Serra.”

Após sucessivas prorrogações, a CPMI do Banco do Estado do Paraná, ou CPMI do Banestado,13 encerrou seus trabalhos no final de 2004. A ocasião foi saudada gastronomicamente com uma imensa e suculenta pizza que delimitou a área de ataque da situação e da oposição. E segurou o ímpeto de uma e de outra. Os dois lados, então, optaram por um providencial acordao, que acabou abafando as movimentações financeiras no exterior por parte de caciques das duas tribos. Mesmo assim, um assessor do PSDB na CPI não conseguia esconder sua irritação. “Essa sua revista (IstoE) está dando trabalho. Tem um juiz maluco de São Paulo que está ameaçando mandar a polícia invadir a CPI se a gente não entregar toda a movimentação do Ricardo Sérgio”, desabafou ao me receber no gabinete.
13 A Comissão Parlamentar (Mista) de Inquérito (CPI) de Evasão de Divisas, ou CPMI do Banestado, realizada pelo Congresso Nacional, foi instaurada em junho de 2003. Teve como motivação uma reportagem de capa, assinada pelo autor e por sua colega Sônia Filgueiras, no dia 5 de fevereiro de 2002, na revista IstoE. A reportagem sustenta que US$ 30 bilhões teriam sido remetidos ilegalmente para paraísos fiscais via Banestado, por meio das chamadas contas CC5. Esta modalidade ganhou este nome por estar prevista na Carta Circular nº 5, editada em 1969 pelo Banco Central, que regulamentava as contas em moeda nacional mantidas no país por residentes no exterior.
O desconforto do assessor, que acabara de envelopar um relatório com os dados que evisceravam as movimentações fi nanceiras do ex -caixa de campanha de José Serra e de Fernando Henrique Cardoso, tinha lá suas razões. Em suas quase 50 páginas, o documento revira as entranhas das atividades do ex -tesoureiro tucano.
Mostra que a offshore Infi nity Trading depositou US$ 410 mil em favor da Franton Interprises no MTB Bank, de Nova York. Dito desta maneira ninguém se dá conta do que estes muitos milhares de dólares signifi cam, de onde vieram e para onde foram. É que os nomes das empresas servem como biombo para seus controladores.
O homem atrás da Franton14 é Ricardo Sérgio de Oliveira. E agora se sabe que quem se esconde atrás da Infi nity Trading é o megaempresário Carlos Jereissati, dono do grupo La Fonte, e irmão
do cacique tucano e ex -senador Tasso Jereissati (PSDB/CE).
A conexão entre Infi nity Trading e Jereissati ratifi ca, pela primeira vez, aquilo que sempre se suspeitou, mas que nunca havia sido comprovado: que o ex -tesoureiro das campanhas do PSDB recebeu propina de Jereissati, um dos vencedores no leilão da privatização da Telebrás. Por meio do consórcio Telemar, Jereissati adquiriu a Tele Norte Leste e passou a controlar a telefonia de 16 estados. O Telemar pagou R$ 3,4 bilhões pelo sistema, ágio de 1%, em 1998.
A comprovação de que Jereissati é o dono da Infi nity Trading está estampada em documento oficial. Consta do Relatório 369, da Secretaria de Acompanhamento Econômico, do Ministério da Fazenda, também encaminhado à Justiça. Oculto até agora nos porões do Tribunal de Justiça de São Paulo, o relatório e outros papéis inéditos da CPMI do Banestado confirmam a vinculação. A Infinity Trading, de Jereissati, favoreceu a Franton, de Ricardo Sérgio, com dois depósitos. O primeiro, de 18 de janeiro de 2000, somou precisamente US$ 246.137,00. E o segundo, no total de US$ 164.085,00, aconteceu em 3 de fevereiro do mesmo ano.
14 Ricardo Sérgio declarou à Receita Federal uma doação de R$ 131 mil reais à Franton, em 2008.
A declaração aparece em processo movido na Justiça de São Paulo pela Rhodia contra a Calfat, empresa de Ricardo Sérgio.
Sigiloso, o documento saiu das sombras depois que o senador Antero Paes de Barros (PSDB), presidente da CPMI do Banestado, foi instado pela Justiça a permitir o acesso aos papéis devido a uma ação de exceção da verdade15 movida pela Editora Três contra Ricardo Sérgio, que processava a empresa e o autor deste livro por danos morais. Buscando evitar uma eventual ação da Polícia Federal, munida de ordem judicial, contra a CPMI do Banestado para apreender o relatório, o senador tucano não teve outra saída senão entrega-lo.
A Infinity foi aberta pelo grupo Jereissati nas Ilhas Cayman, conhecido paraíso fiscal caribenho. Quanto à Franton, o próprio Ricardo Sérgio declarou em 1998 à Receita Federal uma doação de
R$ 131 mil à empresa. A cópia da declaração foi anexada ao processo movido na Justiça Estadual de São Paulo pela Rhodia contra a Calfat, empresa de Ricardo Sérgio.
O dono do grupo La Fonte sempre deu a entender que seu relacionamento com o então diretor da área internacional do Banco do Brasil era algo eventual. Mas a convivência entre os dois não foi tão esporádica quanto Jereissati quis fazer acreditar.
A trajetória de Ricardo Sérgio nos anos FHC, seu poder e sua audácia ao mover-se nos bastidores do poder tucano com frequência o aproximaram das grandes fortunas do país. Naquele ponto privilegiado e nebuloso em que o interesse particular prevalece sobre o público, ele articulou, manobrou e formatou os consórcios de empresas para arrematar estatais durante os anos
dourados da privataria.
15 Ação que possibilita ao acusado por crime de calúnia ou injúria comprovar que é verídica a conduta por ele atribuída à pessoa que se julga ofendida e o processou por isso.
Para Ricardo Sérgio, a vida muda para valer quando Clóvis Carvalho, futuro ministro da Casa Civil, apresenta-o a José Serra e Fernando Henrique Cardoso. É o ponto zero a partir do qual principia a construir sua saga de coletor de contribuições milionárias para o PSDB. Corria o ano de 1990 e Serra, candidato a deputado federal, estava com dificuldades para levantar dinheiro para a campanha. Ricardo Sérgio era o homem certo. Virou tesoureiro, papel de que também se incumbiria em 1994, na eleição de Serra ao Senado. Para Fernando Henrique, arrecadou dinheiro nas campanhas presidenciais de 1994 e 1998.
Sob FHC, o caixa de campanha, que já lidava com poderosos cifrões, passou a manusear quantias espetaculares. Mais ainda após sua indicação — por Serra — para dirigir a área internacional do Banco do Brasil. Desde o seu gabinete, articularia a sucção dos recursos dos fundos de pensão estatais — Previ, Petros, entre outros — para a ciranda das privatizações. Era o homem de Serra quem orquestrava a montagem de grupos para disputar os leilões e garantia o aporte do dinheiro do BB e dos fundos para cada consórcio. Nesta modalidade dois-em-um da privataria, o dinheiro público financiava a alienação das empresas públicas. Leiloadas as estatais, a gratidão expressava-se zelosamente nas campanhas eleitorais do PSDB.
Uma gratidão, porém, que extravasava o limite do estrito financiamento dos gastos eleitorais. E que promoveria um primeiro contato explícito entre Ricardo Sérgio e Jereissati. Em 1994, Jereissati entregou R$ 2 milhões a Ricardo Sérgio para incrementar o caixa de Serra. A soma teria sido paga em quatro ou cinco parcelas. Foi o que o empresário declarou à revista Veja, em março de 2001. No entanto, a prestação de contas de Serra ao TRE/SP contabilizou tão somente a entrada de um cheque de R$ 50 mil. E duas ajudas de serviço totalizando mais R$ 45 mil. Ao todo, portanto R$ 95 mil.
Entre a mão do empresário e o cofre da campanha, os R$ 2 milhões volatilizaram-se, chegando menos de cinco por cento ao destino final. Ignora-se onde a bolada se materializou mais tarde.
O que se sabe é que as declarações de Jereissati desencadearam um festival de bate-cabeças em 2002, ano eleitoral. O próprio empresário apareceu com um remake da versão anterior. Nesta reengenharia semântica, não teria doado R$ 2 milhões, mas somente R$ 700 mil, dos quais R$ 600 mil em serviço — pagara o aluguel do jatinho de Serra durante cinco meses. Apesar do remendo, o problema persistia: os R$ 600 mil também estavam ausentes da prestação de contas do PSDB. E complicou-se ainda mais. Foi quando Serra surgiu, então, brandindo a terceira versão: negou toda a revelação de Jereissati e acrescentou — pior — que não usara nenhum avião do empresário. O que era insatisfatório ficou ainda mais grave depois de uma checagem na documentação oficial da campanha: ali aparece o cheque 642487, da agência 0564 do Unibanco, no valor de R$ 50 mil. E nada mais.
A proximidade entre Jereissati e Ricardo Sérgio ficaria mais evidente em 1998, ano notável em que todo o sistema de telefonia do Brasil, a Telebrás, é vendido por pouco mais de R$ 22 bilhões. É uma quantia tão impressionante quanto aquela que a União investira na Telebrás nos dois anos e meio anteriores à privatização: R$ 21 bilhões.
Na oportunidade, o negócio foi vendido pela imprensa hegemônica aos seus leitores como algo maravilhoso para o Brasil e os brasileiros. Hoje, mesmo alguns tucanos desconfiam — ou têm certeza — que não foi nada disso. “Só um bobo dá a estrangeiros serviços públicos como as telefonias fixa e móvel”, opinou o ex-ministro de FHC, Luiz Carlos Bresser Pereira.16 Um bobo ou um esperto...
16 “O menino tolo”, artigo de Bresser Pereira, Folha de S. Paulo, em 18/07/2010. Ministro da Fazenda no governo José Sarney, Bresser Pereira foi titular das pastas de Administração Federal e Reforma do Estado e de Ciência e Tecnologia nos dois governos FHC. É um dos fundadores do PSDB.
Impressiona também que dos R$ 8 bilhões exigidos como entrada na aquisição da Telebrás, um ente público, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) tenha aportado a metade. É quando o Telemar, de Jereissati, vai levar a melhor sobre o grupo adversário, e desponta o banco Opportunity, de Daniel Dantas.
Padrinho de Dantas, o senador Antonio Carlos Magalhães (PFL) chiou com o resultado. Acusou o diretor da área internacional do BB de ter embolsado propina de 3,4% do valor da Tele Norte Leste, contribuição pela ajuda ao Telemar. ACM chegou a dizer que disporia até de “uma prova testemunhal”. Dantas foi lacônico: “Não confirmo nem desminto”, disse. Financiado parcialmente pelo grupo de Jereissati, o consórcio17 levou a tele desejada. Dantas acabou não adquirindo a Tele Norte Leste, porque já havia arrematado a Tele Centro-Sul e, de acordo com a regra do leilão, o consórcio que adquirisse uma tele estava automaticamente alijado da disputa pelas demais. Assim, no bater do martelo, a Tele Norte Leste foi transacionada com apenas 1% de ágio. Jereissati e seus aliados passaram a comandar a telefonia fixa do Rio ao Amazonas. Porém, como entrou na briga achando que iria perder, o Telemar não tinha dinheiro para pagar o presente. Foi salvo pelo dinheiro público, a mão amiga de Ricardo Sérgio e o cofre do Banco do Brasil.
Arrematada a telefônica, começou um compra e vende frenético de ações. De posse de 14,5% do Telemar, Jereissati vendeu parte deste percentual para três parceiros de consórcio — Andrade Gutierrez, Inepar e Macal. Para isso, valeu-se de uma empresa de fachada, a Rivoli, aberta providencialmente quatro meses antes do leilão por uma sócia do advogado de Ricardo Sérgio, Luis Rodrigues Corvo. Em março de 1999, Jereissati tornou-se o dono da Rivoli, e parte de suas ações rumaram para a empresa. No carrossel financeiro que se instalou, Jereissati vendeu suas ações por preço acima da tabela aos demais parceiros do consórcio. Ao final do processo, a Rivoli embolsou o incrível lucro de R$ 31 milhões. E, imediatamente, encerrou suas atividades. A suspeita é de que toda esta prestidigitação acionária tenha sido apenas um estratagema para borrar a trilha dos cheques no rumo da carteira de Ricardo Sérgio.
Ele, porém, sempre negou qualquer recebimento e até processou ACM pela acusação de cobrar R$ 90 milhões pela montagem do consórcio que levou a Tele Norte Leste. É um tipo de acusação que nunca foi propriamente novidade para Ricardo Sérgio enquanto pilotou a área internacional do BB e modelou os consórcios da privatização. Dois ministros de FHC — Mendonça de Barros, das Comunicações; e Paulo Renato de Souza, da Educação — em diferentes ocasiões, ouviram o empresário Benjamin Steinbruch queixar-se de ter de pagar comissão a Ricardo Sérgio em troca da sua expertise na operação que resultou na venda da Companhia Vale do Rio Doce.
17 Em balanço do grupo La Fonte consta que os participantes nacionais de capital privado do consórcio Telemar receberam financiamento da empresa de Jereissati em troca de opções de compra das ações ordinárias adquiridas.
O controle acionário da Vale foi vendido em maio de 1997, com direito a financiamento oficial subsidiado aos compradores e uso de moedas podres... Custou a bagatela de US$ 3,3 bilhões. Hoje, o mercado lhe atribui preço 60 vezes maior, ou seja, rondando os US$ 200 bilhões. A companhia foi privatizada de forma perversa, atribuindo-se valor zero às suas imensas reservas de minério de ferro, capazes de suprir a demanda mundial por 400 anos. Além disso, a materia-prima registrou elevação substancial de preço na primeira década do século 21.
Sérgio foi essencial no aporte da Previ ao consórcio de Steinbruch.
Diretor do grupo Vicunha, Steinbruch arrematou a Vale por meio do consórcio Brasil, que contava ainda com o Bradesco e a valiosíssima presença da Previ, o fundo de pensão dos funcionários do BB, dono de um patrimônio de R$ 37 bilhões. A ajuda de Ricardo Foi tão importante, que o empresário Antônio Ermírio de Moraes, do grupo Votorantim, que tocava o único consórcio até então na disputa, perdeu o apoio do Bradesco e da Previ e acabou batido no leilão. “Saí limpo disso e durmo em paz no travesseiro todas as noites”, consolou-se na ocasião o dono da Votorantim.18 Qual o custo desta vitória? O então ministro da Educação de FHC ouviu Steinbruch falar em R$ 15 milhões. À revista Veja declarou que o dinheiro era exigido por Ricardo Sérgio “em nome de tucanos”. FHC foi comunicado e negou ter conhecimento do assunto, desautorizando qualquer cobrança. Executivos da área financeira, ministros e empresários afirmaram a outra publicação, com a condição de que suas identidades não fossem reveladas, que a propina, realmente, era de R$ 15 milhões e foi, pelo menos, parcialmente paga. Segundo a apuração, os intermediários da negociação com Steinbruch seriam os empresários Miguel Ethel e José Braffman, ambos parceiros do então diretor do BB.
As imagens históricas do leilão revelam o estado de espírito e a convicção da fina flor do tucanato sob a regência de Fernando Henrique Cardoso. Mas nada mostram da tarefa subterrânea, a cargo de Ricardo Sérgio de Oliveira, que tornou possível as privatizações do período.
Para se ter uma ideia do que foi feito — e como foi feito — é preciso acompanhar a retórica dos porões da privataria, captada nos famosos grampos do BNDES. Então presidente do BNDES — depois seria ministro das Comunicações — Luiz Carlos Mendonça de Barros teve os telefones de seu gabinete grampeados.
Seus inimigos políticos visavam flagrar conversas entre Mendonça de Barros e seus filhos Marcello e Daniel. Donos da corretora Link, que havia pouco começara a atuar na Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F), os dois experimentavam um sucesso de velocidade alucinante operando com ações da Telebrás, cuja privatização era articulada pelo pai. As conversas de pai para filhos não apareceram nas fitas, mas afloraram inconfidências mais eloquentes do que a maioria dos discursos sobre privatização.
Sempre é saudável rememorar o elevado espírito público que norteou as operações de modelagem dos consórcios das privatizações expondo suas entranhas: — O negócio ta na nossa mão, sabe por que, Beto? Se controla o dinheiro, o consórcio. Se faz aqui esses consórcios borocoxôs, são todos feitos aqui, (...) —argumenta Mendonça de Barros, ao telefone com o irmão José Roberto, secretário executivo da Câmara de Comércio Exterior.19 A corrida para comprar as estatais havia rachado o governo. De uma parte, o grupo de Mendonça de Barros e do presidente do BNDES, André Lara Resende. De outra, Ricardo Sérgio e sua turma. A primeira facção operando em benefício do consórcio integrado pelo banco Opportunity e a Telecom Itália. A segunda, junto ao Telemar, de Jereissati, mais Andrade Gutierrez, Brasil Veículos, Macal e Aliança do Brasil. Os dois litigantes almejam a adesão da Previ.
18 Epoca, edição de 13/05/2002.
E adiante: — Temos que fazer os italianos na marra, que estão com o Opportunity. Combina uma reunião para fechar o esquema. (…) Fala pro Pio (Borges, vice-presidente do BNDES) que vamos fechar (os consórcios) daquele jeito que só nós sabemos fazer. É Mendonça de Barros novamente, aqui transmitindo orientações para Lara Resende. Para Mendonça de Barros, Jereissati e os seus parceiros são a “ratada” ou a “telegangue”, reportando-se ao suposto aventureirismo dos rivais. A promiscuidade entre público e privado é tão evidente que, sócio do Opportunity, o economista Pérsio Arida aparece em diálogos com Lara Resende. Em dado momento, Mendonça de Barros, que tentava convencer o presidente da Previ, Jair Bilachi, a aportar o dinheiro do fundo ao consórcio do próprio Opportunity informa ao interlocutor: “Estamos aqui eu, André, Pérsio e Pio...”.20 Mendonça de Barros liga para Ricardo Sérgio e explica que o Opportunity está com “um problema de fiança” para participar do leilão das teles. E propõe: “Não dá para o Banco do Brasil dar (a fiança)?”.
Acabei de dar — responde Ricardo Sérgio, que alcançou R$ 874 milhões para o consórcio de Dantas. E agrega, cometendo a frase síntese do processo de privatização à brasileira. “Nós estamos no limite da nossa irresponsabilidade.” E emenda outra, mais tosca e premonitória: “Na hora que der merda, estamos juntos desde o início.” Vale relembrar um telefonema de FHC para Mendonça de Barros. Queria saber a quantas andava a preparação do leilão das teles. Recebe, como resposta, que “estamos com o quadro praticamente fechado”. À vontade, os dois comentam o tom apologético adotado pela mídia para saudar as privatizações, que catapultariam o Brasil ao concerto das grandes nações. Não era ingenuidade. Se, de um lado, os grandes conglomerados propagandeavam as benesses que a venda do patrimônio público traria ao país, de outro, sonegavam aos seus leitores, ouvintes e telespectadores a condição de integrante de consórcios que disputavam a aquisição das teles.
A imprensa está muito favorável, com editoriais — comenta Mendonça de Barros.
Está demais, ne — diz FHC. — Estão exagerando até... — acrescenta, mordaz com seus áulicos midiáticos.
20 “Sob suspeita”, matéria de Bob Fernandes em Carta Capital, edição de 25/11/1998.
No interior do governo, finalizada a queda de braço e leiloadas as teles, todos voltaram às boas. À revista Veja, falando sobre sua afinidade com Ricardo Sérgio, Mendonça de Barros declarou: “Eu não vou ficar irritado com um amigo meu”, disse. “Mas quem é amigo dele mesmo é o Serra e o Clóvis.”
O relatório da CPMI do Banestado, que comprova pagamento de propina durante as privatizações é embasado por, entre outros documentos, um CD contendo informações do MTB Bank, o malfadado banco fechado pela Promotoria Distrital de Nova York por lavagem de dinheiro. Os arquivos do MTB Bank, que acabaram sendo absorvidos pelo Hudson Bank, reúnem quase dez mil operações de contas de passagem abertas por um seleto consórcio de doleiros da América do Sul. São conhecidas como contas-ônibus, porque cumprem apenas uma função: levar e trazer para paraísos fiscais dinheiro oriundo do narcotráfico, do terrorismo e da corrupção. A chamada lavanderia do MTB Bank começou a ser desvendada em março de 2003, quando Robert Morgenthau, chefe da promotoria de Nova York, entregou ao delegado da Polícia Federal José Castilho e ao perito Renato Barbosa o CD com as informações secretas. Os policiais federais, que desvendaram a lavanderia do Banestado, foram apresentados a Morgenthau, um ex-oficial da Marinha americana que durante a 2ª Guerra Mundial esteve no Brasil, pelo então correspondente da revista IstoÉ em Nova York, Osmar de Freitas Jr, amigo pessoal do promotor.
Os dois federais haviam ouvido falar do MTB Bank pela primeira vez em 1999. Ocorreu quando flagraram um colega, o delegado da PF em Foz de Iguaçu (PR), Davi Makarausky, em uma atitude muito estranha. Makarausky jogara um computador do alto de um edifício na Avenida Paulista. A manobra, porém, não teve o resultado esperado pelo seu autor, mais tarde expulso da corporação e sentenciado a oito anos de prisão. Pacientemente, após juntarem as peças do computador, os peritos da PF conseguiram recuperar arquivos que traziam uma classificação misteriosa: “MTB, Banestado II”. Os federais descobririam que o MTB Bank havia sido brindado com esse apelido pelos doleiros, devido ao fato de ter substituído o Banestado no processo de clareamento de dinheiro sujo em 1999. Naquele ano, o banco, crivado de denúncias de corrupção, foi fechado pelo Banco Central.
Em março de 2004, Morgenthau entregou o mesmo CD a uma comissão de deputados da CPMI do Banestado que fora aos Estados Unidos catar evidências sobre a movimentação bancária de brasileiros no exterior. Ao analisarem os arquivos, os assessores depararam-se com material mais explosivo do que aquele contido no antigo Banestado. Esmiuçadas em uma planilha, as operações do MTB Bank apontavam para empresários, traficantes, contrabandistas e políticos. A revelação dos dados do MTB foi determinante para que fosse desencadeada a operacao abafa na CPMI. Os arquivos ocultavam informações capazes de constranger tanto o governo Lula quanto o de FHC.
As planilhas do MTB Bank e os demais documentos que a CPMI foi obrigada a repassar à Justiça de São Paulo revelam que Ricardo Sérgio de Oliveira movimentava no exterior o dinheiro da propina das privatizações por meio da rede de doleiros chefiada por Dario Messer. É o mesmo duto de dinheiro sujo que o ex subsecretario de Administração Tributária do Rio de Janeiro Rodrigo Silveirinha Correa e os demais integrantes da chamada Máfia dos Fiscais usaram para remeter à Suíça os quase R$ 20 milhões desviados dos cofres do governo estadual. De acordo com os dados contidos no CD, a mesma rede de doleiros lavou toda a grana proveniente do contrabando de diamantes do país. De acordo com o relatório confidencial da CPMI do Banestado, Ricardo Sérgio movimentou US$ 7,56 milhões na conta Kundo no MTB Bank, operada pelos doleiros Clark Setton e Roberto Matalon. “Dados dessa CPI indicam haver relação entre Dario Messer por meio da Kundo”, diz o relatório.
Ainda de acordo com os dados da CPMI, o ex-tesoureiro do PSDB trazia e mandava valores para o estrangeiro por meio das chamadas operações cabo, criadas pelos doleiros para driblar o rastreamento da PF, da Receita Federal e de outras autoridades policiais e fazendárias. São conhecidas também como operações intercontinentais. Ocorrem dentro de um mesmo país, na maioria das vezes nos Estados Unidos. Então, para que esse tipo de operação aconteça é necessário que o doleiro e o cliente já possuam contas fora do Brasil. Quando deseja enviar dinheiro para o exterior, basta o cliente entregar o montante no escritório do doleiro no país. Em seguida, a rede de doleiros transfere a mesma quantia de sua conta para a conta do cliente no estrangeiro.
Quando o objetivo é trazer dinheiro de fora, ocorre o inverso. O cliente faz um depósito de sua conta para a conta do doleiro no exterior e saca a bolada no Brasil.
O relatório secreto da CPMI do Banestado mostra, por exemplo, que no dia 28 de novembro de 2000, Ricardo Sérgio usou a conta número 30010969906, aberta pelo seu sócio e testa de ferro Ronaldo de Souza para trazer US$ 100 mil dos Estados Unidos. Ronaldo de Souza realizou um depósito na conta da Kundo no MTB Bank e, em seguida, Ricardo Sérgio recebeu os recursos dos doleiros no país. A papelada revela que durante o período de 1998 a 2001, o ex-caixa de campanha do PSDB realizou 21 operações desse tipo para internar dinheiro. “Registra-se a necessidade de quebrar o sigilo da conta de Ronaldo de Souza no International Miami Bank”, recomenda o relatório assinado pelo relator da CPI, deputado José Mentor (PT/SP).
A maior parte dessas operações a cabo do MTB Bank foram fechadas em escritórios abertos no edifício Di Paolo, no centro do Rio. Por sinal, o nome do prédio serviu de inspiração para Messer criar uma safi — nome de offshore no Uruguai — batizando-a como Depollo. Além de movimentar milhões de dólares no Banestado e no MTB Bank, a Depollo serviu para transportar para a Suíça o dinheiro desviado pela Máfia de Fiscais do Rio. Os dados do MTB atestam que a Depollo funcionou como lavanderia para limpar mais de US$ 200 milhões em diamantes extraídos ilegalmente do país. Foi por intermédio da conta Depollo no MTB Bank, por exemplo, que os irmãos Gilmar e Geraldo Magela, negociantes de Patos de Minas (MG), conseguiram internar parte do resultado obtido com a venda de um diamante cor-de-rosa. A pedra foi vendida para um comerciante de Hong Kong por US$ 12 milhões. A incrível história do diamante de 80 quilates, publicada pelo autor na IstoE em 2005, foi contada pelos próprios comerciantes de pedras.21 “Durante mais de 50 anos, quando não era possível a exportação de pedras, Messer foi o responsável por trazer para o país todo o dinheiro do contrabando de diamantes para o exterior”, disse Gilmar Campos. Ele afirmou ter comprado a pedra de um garimpeiro que explorava um garimpo no rio Abaeté em 1999. Logo em seguida, Gilmar e seu irmão assinaram compromisso de vende-la por US$ 12 milhões para o italiano Gino Giglio, ex-diretor da Black Swam, empresa canadense que realiza pesquisa de mineração em Minas Gerais. Gilmar e o italiano, que morreu de infarto em 2010, seguiram para Nova York com a pedra escondida em um maço de cigarros.
21 “A incrível história do diamante cor-de-rosa”, em IstoE, edição de 15 de setembro de 2004.
Mas o plano de comercializar o diamante para o cartel de compradores, controlado por um grupo de judeus, acabou não dando certo. O cartel resolveu fazer um pacto de desvalorização e “queimar” a pedra. Ao perceber que o italiano não tinha condições de cumprir o acordo, os irmãos Magela resolveram trocar a gema verdadeira, depositada num cofre no Chase Manhattan Bank, por uma falsa.
Nós estávamos desesperados. Depois da troca, contratamos um intérprete e seguimos para Hong Kong, onde vendemos o diamante que, depois de lapidado, está avaliado em US$ 30 milhões”, explicou Gilmar Magela.
Dados do MTB Bank indicam que, em 2002, os Magela trouxeram ao Brasil, via Depollo, US$ 6,5 milhões em valores lavados referentes ao diamante rosa contrabandeado para a China. Os mesmos documentos comprovam que a conta foi usada para evitar o rastreamento das autoridades brasileiras e americanas. A exemplo de Ricardo Sérgio, os Magela também recorreram às operações a cabo do MTB Bank para internar toda a dinheirama. O comprador da China depositou o dinheiro numa conta dos Magela no Chase Manhattan Bank de Nova York. Em seguida, os irmãos transferiam recursos em dólares para a Depollo no MTB e sacavam imediatamente o dinheiro em espécie com Messer no Rio. Durante o período de abril a agosto de 2000, deram-se nove operações desse tipo. No dia 12 de abril, por exemplo, há referência nos documentos do MTB de uma transferência da conta no 635001106 no Chase Manhattan para a conta da Depollo.
Não fiz nada de errado. Em vez de sair com divisas, eu trouxe divisas para o país. Quando precisava de dinheiro, eu apenas fazia a transferência da conta da Depollo e recebia o dinheiro com o Messer no Brasil”, interpreta Gilmar Magela.
O relatório da CPMI do Banestado foi fundamental para que a Justiça de São Paulo considerasse improcedente a ação de danos morais movidas por Ricardo Sérgio contra mim e a IstoE. O ex diretor da área internacional do Banco do Brasil teve de pagar R$ 400 mil aos advogados da revista para recorrer da decisão em segunda instância. Só em 2008, quando comecei a recolher documentos para este livro, tive acesso aos documentos, hoje guardados num prédio da Justiça em Jundiaí (SP). Ao contrário do que sugeriu o relator da CPMI, a conta de Ronaldo de Souza em Miami nunca foi investigada. Afinal, o CD do MTB Bank — que primeiro motivou um bangue-bangue e depois um pacto de silêncio — serve a gregos e troianos.

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