- Capitulo 01 – A História Antes da História
As meninas executadas pelo narcotráfico.
Cento e cinquenta jovens assassinados.
O faroeste caboclo ao redor de Brasília.
Da policia para a politica.
Antes de tudo há o tiro. Não fosse o tiro, talvez a história que vai ser contada aqui não existiria. Então, antes de contar a história, é preciso contar a história do tiro. No começo da noite do dia 19 de setembro de 2007, o tiro vai partir de um 38 e entrar na minha barriga, de cima para baixo, em um bar na Cidade Ocidental, em Goiás. Dos três tiros disparados, será o único a atingir o alvo, mas fará o seu estrago. Vai atingir a coxa e passar rente à artéria femoral. Por uma questão de milímetros, vou escapar da hemorragia e de morrer esvaído em sangue na porta de um bar do entorno de Brasília.
Nas semanas que antecederam o tiro, eu ouvira dezenas de pessoas e vasculhara documentos e ocorrências policiais em Cidade Ocidental. Em um primeiro momento, minha tarefa era descrever
um crime bárbaro: o assassinato de duas meninas, Natália Oliveira Vieira, de 14 anos; e Raiane Maia Moreira, de 17, com tiros na boca e na nuca. Registrada pelas lentes dos peritos, a cena do crime era chocante: as duas adolescentes de classe média abraçadas e mortas num matagal. O estado de suas roupas evidenciava que haviam sido violentadas. Não demorei a perceber que o cenário ilustrava a realidade de muitas famílias que, empurradas pela especulação imobiliária, rumavam para cidades-dormitórios onde o crime era a única lei. Na ausência de parques, praças ou qualquer tipo de lazer, a juventude do entorno passava o dia inteiro em lan houses. Ali se tornavam presas fáceis de traficantes e outros bandidos.
Quando fui examinar os arquivos do Instituto Médico Legal de Luziânia (GO), percebi que a situação era muito mais grave. Descobri que 150 jovens haviam sido assassinados nos arredores da Capital Federal em apenas seis meses. Na crônica deste massacre, 41 das vítimas tinham entre 13 e 18 anos. As demais, entre 19 e 26 anos. Era o saldo da carnificina promovida pelo crime organizado e o narcotráfico em uma região distante apenas algumas dezenas de quilômetros da Esplanada dos Ministérios.
Com a ajuda do amigo Idalberto Matias de Araújo, o agente Dada, do Serviço de Inteligência da Aeronáutica (Cisa), consegui respaldo dos policiais para aprofundar ainda mais as investigações.
E chegou às minhas mãos um relatório da P2, o serviço secreto da Polícia Militar de Goiás. Nele, o traficante João Carlos dos Santos, o Negao, é responsabilizado pela administração do tráfico e pela
maioria das execuções de crianças e jovens. Ele montara uma central de distribuição de cocaína e merla, uma versão do crack em pasta, que tomou conta da periferia do Distrito Federal. No teledroga de Negao, o crack e a merla eram entregues em domicílio por meio de uma rede de meninos recrutados pelo tráfico. A primeira reportagem da série Tráfico, Extermínio e Medo foi publicada no dia 4 de setembro pelo Correio Braziliense. Nela, está o relatório da P2. E uma foto de Negao. No dia seguinte, o então governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda (DEM), propôs a convocação da Força de Segurança Nacional. Arruda queria que a unidade federal auxiliasse as polícias do DF e de Goiás a controlar a área. A proposta, no primeiro momento, não foi bem recebida pelo governo de Goiás.
Para o governador Alcides Rodrigues (PP), bastaria a liberação de recursos da União para solucionar o problema. Porém, no dia 11 do mesmo mês, o Ministério da Justiça colocou 374 homens da Força de Segurança Nacional à disposição dos dois governos. E informou o repasse de R$ 10 milhões para que as duas administrações investissem em segurança pública.
No dia 16, nova matéria, agora adicionando outros cinco nomes à listagem dos mortos. Apesar das advertências que me alertavam para o desagrado da bandidagem diante da iminência da chegada
de tropas federais ao entorno da Capital, resolvi prosseguir a investigação.
Uma colega da redação havia me relatado o drama dos familiares de outra adolescente executada. Então, retornei à Cidade Ocidental. Foi a maior besteira.
Eu e o motorista do jornal, Francisco Oliveira, o Carioca, estávamos na varanda de um bar. A gente tomava uma cerveja enquanto eu aguardava a fonte que poderia trazer informações sobre o assassinato mais recente. Ali por volta das sete da noite chegaram dois sujeitos. Um deles usava um casaco com capuz e um boné e quase não se via seu rosto. Era o dia 19.
Foi tudo rápido demais. Um dos homens começou a atirar, e num impulso, minha primeira reação foi me atracar com o desconhecido.
Caímos no chão quando ele efetuou outro disparo. O motorista tentou tomar-lhe a arma, mas também foi recebido com um tiro. O bandido errou o disparo e ação de Carioca acabou provocando a fuga da dupla.
— Você está ferido? — perguntei ao Carioca enquanto ele me ajudava a levantar.
— Eu não, mas você levou um tiro. O cara não anunciou assalto.
Foi um atentado — respondeu.
Como não sentia dores, demorei alguns segundos para acreditar. Só tive a certeza ao ver as marcas de sangue espalhadas no chão do bar.
Levado para o posto de saúde local para estancar o sangue, logo fui removido para o Hospital Regional do Gama, onde Arruda, diretores do Correio Braziliense, políticos, jornalistas e parentes já me aguardavam. Depois de muita discussão com políticos ligados à área de saúde, o cirurgião Giuliano Trompetta resolveu me operar para detectar uma possível hemorragia.
— Embora não haja sinais de hemorragia, eu sou o responsável e vou operar para evitar problemas — disse às autoridades que o questionavam sobre a necessidade da cirurgia.
O atentado comoveu muita gente. Ministros, políticos e organizações de direitos humanos condenaram a agressão. Durante quase dois anos, o incidente foi citado nas páginas da imprensa internacional, que enviaram equipes de reportagem à região do entorno. A história ganhou espaço em jornais das mais diferentes linhas editoriais.
Na Inglaterra, por exemplo, foi destaque em diários tão distintos entre si como o circunspecto Financial Times e o tabloide The Mirror, mais focado na descoberta de escândalos da família
real e de outras celebridades.
Na apuração, a polícia de Goiás — contrária à presença de tropas federais na região — levantou a tese de que não teria havido tentativa de homicídio e sim um assalto malsucedido. Três suspeitos
foram apresentados à imprensa. Embora tenha apontado várias contradições na investigação, a imprensa não teve o cuidado de checar os dados dos suspeitos. Nunca foi dito, por exemplo, que o suposto autor do disparo, um adolescente conhecido como Piteu, é sobrinho em primeiro grau da então prefeita da cidade, Sonia Melo (PSDB), e primo do traficante Amadeu Soares, o Sergio. Numa interceptação telefônica da Polícia Federal com autorização judicial, os familiares de Piteu aparecem comentando a participação de Sergio no crime. “Precisamos esconder a bicicleta do Sérgio”, afirma uma parente de Piteu sem saber que estava sendo monitorada pela PF.
Apesar das divergências entre os governos do DF e de Goiás, uma semana depois do atentado — enquanto eu deixava a Capital sob escolta da polícia até o aeroporto — agentes da Força de Segurança Nacional começaram a chegar a Brasília. Acompanhado de meu pai, segui para Belo Horizonte para me recuperar ao lado da família. A Força de Segurança Nacional permanece até hoje na região. O governo federal montou um quartel para formação e treinamento em Luziânia. Negao e os principais traficantes denunciados pela reportagem estão presos. Mas as crianças e adolescentes continuam sendo assassinados pelas facções criminosas da região.
Quando saí do hospital, mergulhei fundo na depressão. Não podia me expor, não podia trabalhar em Brasília. Minha vida pessoal também sofreu muito com isso. Foram tempos duros. O panorama começou a mudar quando retomei o trabalho. Fui transferido do Correio Braziliense para o Estado de Minas, diário de Belo Horizonte do mesmo grupo. Longe de Brasília, troquei as pautas de polícia em favor das de política. Agora, o confronto não era entre os bandidos e a lei no faroeste caboclo do entorno. Não havia tiros, cadáveres ou sangue nas ruas. O embate era silencioso e sorrateiro nos desvãos da política e, principalmente, da baixa política. Esta coreografia de punhais no interior do ninho tucano envolvia as pre-candidaturas de José Serra e de Aécio Neves à Presidência da República. Brasília, de novo, entrava na minha vida. E começava uma outra história.
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